Sunday, April 05, 2015

O meu querido Chico Silveirinha

Poucos dias antes de morrer, o meu avô, já um esqueleto de pijama, pediu-me para ir à janela do corredor. Já não comia, pouco bebia, a vida já lhe era uma saudade qualquer que ainda lembrava porque é o coração o último soldado a morrer. Nas trincheiras do Hospital, seguimos, passo a passo, devagarinho, ele encostado a mim, eu encostado a ele, os ramos nus dos braços como árvores de Outono e a pele ou branca ou amarela, mas ainda capazes de fazer sentir o sangue, um último sangue que lá dentro pulsava. 

Eram talvez dez da noite e as horas não interessavam. Abri a janela, no nariz alentejano do meu avô passou uma brisa, um cheiro a luzes e a Lua. Cheirava a estrelas. Os olhos incendiados de despedida. O meu corpo a abraçá-lo como se eu é que fosse o avô do meu avô. Era noite, a vida estava quase a fechar, e os seus olhos abertos para a última imagem: um céu cheio de pirilampos. Apertou-me o braço, sorriu-me, olhou-me com olhos de criança e eu levei-o à cama para o aconchegar no sono dos sonhos dos sonhos do sono. 

Se a vida fosse perfeita como nos maus filmes, então eu teria posto o Carlos do Carmo, que era um amor do meu avô e que também é um amor meu por causa do meu avô. Na sala a respirar o odor da terra do caminho que vai da vida para a morte, em loop o final da «Madrugada»:

«Mas quase, ao romper da aurora, há uma guitarra que chora: saudades da minha vida.»

Sunday, June 01, 2014

Sem condolências



Nos braços da noite, enquanto via desfilar pela pequena capela fria uma lenta procissão de pés e vestidos de luto, caras rudes de lamento e choro, rugas, desesperos, canções de pesar e sons de vozes em coscuvilhices, de mãos secas e largas sobre a cara Ernesto Tábuas sonhava às avessas: um sonho antigo que vinha do frio dos telhados, descia colado pelas paredes, galgava a mármore do chão, trepava pelas pernas, amansava-lhe a dor no peito e logo lhe cobria o pranto, envolvendo-o numa máscara ausente de dor, quase parecendo aliviado se olhos menos dados à cultura dos sentires o olhassem sem ternura. 

Era velho, aquele sonho. Tinha veios de árvore e braços de nuvens. Não sabia já se havia sonhado o sonho ou se era o sonho que o sonhava a ele, envolto numa espécie de capa etérea, sono acordado na luz da memória. Lembrava-se do sabor das laranjas, do cheiro a ramos e terra, de picar os dedos enquanto as abria e logo as sugava, sob um sol mais sol que os últimos sóis: era um sol completo de infância, riso e vento. 

Deitado com a cabeça encostada no tronco da árvore, Ernesto esperava. Ouvia o pequeno riacho ora lamber as pedras ora levantar sons de prata que o faziam erguer-se e espreitar o curso da água, esperando encontrar no seu seio algum peixe menos avisado que tivesse caído na armadilha que preparara: uma gaiola feita de galhos e folhas, um fio de cordame e a paciência dos sobreviventes. Porém, de repente, e porque os sonhos não têm geografia que os delimite, era Ernesto quem acabava armadilhado na corrente, puxado pela força das marés, náufrago de uma ribeira que se metamorfoseara em longo e vasto oceano. 

Dentro da gaiola, o seu pequeno corpo aumentava a cada espiral de onda que via formar-se por dentro de dentro do mar e eram as pernas e os braços e a cabeça e o peito que, crescendo à velocidade de uma respiração, chocavam contra as grades feitas de algas e troncos de árvores, ganhando os pulmões novas guelras, a pele escamas, os pés formatos estranhos de barbatanas. Queria sair dali, nadar até ao cimo, respirar humano o ar do vento, mas as águas enfurecidas

«Senhor Tábuas, as minhas sentidas condolências...»

Wednesday, December 04, 2013

Agenda para o fim do mundo

agenda para amanhã, ou o fim do mundo: sentar-me junto ao senhor sentado no largo central da aldeia e perguntar-lhe se aquele banco de jardim passa na nuvem 53; juntar-me ao bêbado dos semáforos a observar os carros com gente dentro; causa transtorno às pessoas pedirmos café e imperial ao mesmo tempo (o choque térmico, o irremediável choque térmico); o que falta ao mundo é mais mar; a saudade é este inútil silêncio com cheiro; comer Ruy Belo ao lanche; as pessoas deviam poder andar na diagonal; se eu sair agora rumo ao fim do universo ainda vou a tempo de ver os teus olhos?; a mais próxima visão de planetas distantes encontro-a nas retinas da gata Maria; há uma mão gigante que estoira o mundo como bolhinha de plástico; encontro-me sempre com o meu Pai nos sinos da garganta do Neil Young; a única dieta saudável é a que conta as calorias do prazer; deram-te um nome pelo qual respondes mas o que és começa e acaba antes de ele ser dito; há dias em que os livros da estante aquecem mais do que 10 fogueiras; não te deites sem o coração atrelado à almofada; eu dentro de ti no sal do mar do sol da Toscânia; voltar a jogar xadrez alcoolizado na terra de Pablo Neruda; agendar para o fim da existência o fim da existência; sobre o céu do Sado caem três cores exactamente à mesma hora, nenhuma diz o teu nome; a cada segundo desembarcam tropas na Namorandia; faltou a Hitler um pão com manteiga e tulicreme; conheço este cheiro, vem de quando não tinhas olfacto; na mercearia deixo de comprar manteiga por estar uma velha sentada num banquinho à frente da arca dos frescos; esta mousse é caseirinha?; algures no mundo estão agora pai e filho a comprar um colchão de praia com muitas cores; definitivamente dizemos palavras a mais.


Monday, November 18, 2013

Cuidados paliativos.

Viver na Arrábida, para além de tudo o que tem de bom (e é muito), traz alguns evidentes problemas. Desde logo, o facto de não ter acesso ao «Jornal de Letras». Já percorri todos os quiosques, livrarias, pequenas papelarias, cafés com jornais num raio de dezenas de quilómetros. Nada. Ou Lisboa ou nas grandes superfícies, onde ainda existem uns exemplares perdidos todos os 15 dias - normalmente há 2, às vezes só 1. Descobri que se quero ler o jornal tenho de ir ao Fórum Montijo. É saudável, passeia-se, sente-se o bafo da loucura anémica dos Centros Comerciais, mas há aqui qualquer coisa que está inevitavelmente a perder-se. E é o mundo tal qual o conhecíamos.

Hoje, numa das minhas sempre esperançosas e incessantes buscas pelo jornal perdido, em conversa com a dona de uma papelaria e depois de ouvir mais um incrédulo "isso ainda existe?", soube de mais uma extinção: o «O Setubalense», publicação com 158 anos, suspendeu as suas funções em Maio. E assim morrem jornais, sem campa nem nada, terreiro aberto, soltando tiras de papel e tinta contra a tela do céu.

Felizmente, temos ainda a inundar-nos os olhos as «VIP», as «Caras», as «Nova Gente» e tantas outras, todas tão cheias de cores, tragédias e mamas. Podemos ficar sem o conhecimento do mundo, dos artistas ou das regiões, mas que ninguém nunca nos prive de privar de forma tão privada com o privado das cuecas dos famosos.

Wednesday, April 10, 2013

Bichos

Dás-te porque vais numa maré 
de afectos e o corpo
aos rodopios
não controla os braços que se estendem 
e ganham dimensões de asas 
ou as pernas que se submergem na água 
até ao fundo do fundo 
do mar. 

Sem direcção nem países
tanto voas como mergulhas
e encontras-te sempre
furando o céu ou escavando areias
na fronteira da ternura.

O amor
o teu amor
não tem apelido.

Friday, September 07, 2012

Ode à Margarida Prieto



Como eu não sou religioso, tenho tempo para pensar. Se eu andasse a planear roubar a caixa de esmolas da Igreja, a inventariar a vida dos outros, a estudar exaustivamente os livros que dizem que Deus existe porque o filho dele escreveu um livro, em rezas ou idas à missa, restar-me-ia pouquíssimo tempo para o resto. E o resto é absurdamente desgastante. Cansa muito pensar, consomem-se dias nisto e não se chega a conclusão nenhuma. Se ao menos Deus existisse para desinventar os que nele não crêem. Se ao menos.
 
Como tudo seria mais fácil se eu acreditasse que, morrendo, viveria e não esta estúpida ideia que não me sai da cabeça de que, morrendo, morro. Uma luz que me chegasse de fininho, me iluminasse e me criasse crente. Não precisava de ser cinematográfico; um toque no ombro, um pentear de cabelos, uma mão sobre a minha, dois cubos de gelo sobre a mesa, qualquer coisa que me ensinasse o dom da fé sem questões. Mas mantenho teimosamente esta luta comigo próprio, este absurdo necessitar de provas, de coisas tangíveis e claras. Se ao menos Deus existisse e me chamasse pelo nome. 

Às vezes estou na cozinha a olhar o horizonte nublado, requisitando absolvições divinas e oiço uma voz. "Ricardo, Ricardo" e não sei se é do gin se do adiantado do mundo mas entra-se-me uma esperança de eterno que logo é miseravelmente destruída pela realidade: afinal não é Deus nem Nosso Senhor nem sequer a Fátima que gostava de comer azeitonas em cima de uma árvore. É a vizinha que traz o quotidiano: "podes passar-me as cuecas do meu filho que caíram no teu estendal?". Se ao menos Deus fosse uma dona de casa. Se ao menos.

No outro dia, visitaram-me. Abri a porta e uma senhora muito bem composta com o seu deficiente mental de estimação atrás dela, de óculos muito grandes, vítreos e profundos, umas mãos pequenas e uns olhos que me perscrutavam as pontas dos pés. A senhora de cabelo apanhado, casaquinho de malha, ombros caídos sob a presença do etéreo e uns livrinhos de que, tem a certeza, eu vou gostar muito de ler. Não são bem livros, antes folhetos, páginas a azul e branco com propaganda jeová. "Já leu as crónicas do Dr. Abraham Milzenovky Tratcher Viktus?", "Com imensa pena minha, não li", "Pois é, as pessoas hoje em dia dedicam-se a outras coisas", "De facto", "O que tem a dizer sobre a religião?", "Talvez caia melhor com chourição", "É crente?", "Apenas no que vejo e no Benfica", "Vê este pobre coitado aqui perto de mim?", "Se os olhos não me enganam...", "Foi salvo por Deus", "Tem provas?", "Não são necessárias", "Nem para ele próprio?", "O rapazinho não tem capacidade para isso", "Porquê?", "Tem uma deficiência mental profunda", "Compreendo", "Já leu a Bíblia?", "Aos soluços", "E o que retirou dos ensinamentos?", "Pouca coisa, quase nada, um adultério aqui, uma traição acolá, uns crimes de fraco teor artístico, pão, vinho e pouco mais", "Não se brinca com coisas sérias.", "Precisamente o que sinto", "Então sabe que Deus existe e nos ama a todos?", "Não sei, nunca o conheci barba com barba", "Tem dúvidas sobre a existência de Deus?!?!?", "Todas e mais algumas", "Mas se está escrito no livro..."
 
De modo que penso, a espaços. Relaciono coisas. Por exemplo: no outro dia vi uma foto do M. tirada na Suíça que me mostrava um jogo de xadrez gigante, com pessoas em volta. Faz todo o sentido. O que peca no jogo é precisamente a diminuta visão que podemos ter dele, quando num tabuleiro ou, pior, na internet, com as pecinhas todas espalmadas e nós a vermos-lhes os cocurutos. Para o jogo de xadrez, é necessária visão e dimensão espacial. Para imaginarmos os ângulos, o jogo de vai e volta, o futuro das peças, a morte ou sobrevivência consoante as várias escolhas do agora. Fosse o xadrez um enorme campo de ténis e o desporto teria outra popularidade entre as gentes. E, no fundo, xadrez, ténis, bilhar, futebol, o jogo da parede ainda no velhinho ZXSpectrum são de um agnosticismo desarmante. Não chega crer, há que ir crendo, aos poucos, em ângulos, devagarinho, ganhando centímetros, teimando, desistindo, escolhendo vias, pondo em causa, acertando. 
 
A religião é um bocadinho como aquele ser, muito de Cascais, que um dia conheci em estágios futebolísticos e que tinha como conceito de vida o limpar o rabo um número, reduzido e sempre igual, de vezes: se a merda resistisse, tanto pior.

Tuesday, August 14, 2012

O meu Bairro (1 e 2)

Desde 2002 que não vivia em Lisboa. Mesmo nesses anos vivi em Entrecampos, poiso simpático e muito arrumadinho, mas não era bem Lisboa, era um sítio que valia por estar ao lado da Feira Popular e do Jardim do Campo Grande. Quero dizer: era Lisboa mas com muitos prédios grandes a tapar o céu e pouca gente vinda das veias. 

Hoje acordo, abro o corpo para o mundo numa varanda cheia de livros e sol e o que vejo é o rio ao fundo empurrando barquinhos, barcos, grandes embarcações de entulho ou de coisas bonitas ou pessoas ou navegações, apanho o ângulo em que o Tejo se torna mar e finta uma fábrica e as areias do outro lado e talvez, talvez, tenha chegado o momento de estar em Lisboa. Gaivotas e andorinhas fodem neste final de tarde - promiscuidades biológicas incompreensíveis por cima de telhados. Há de tudo, aqui. 
Estou bem-vindo, Lisboa, estou sim senhor. Há 30 anos que queria voltar.

No meu bairro conheci uma goesa enquanto passeava metodicamente o cão. Era eu quem levava quadrúpede, a goesa, que não cheirava a caril mas tinha aquela voz de chamuça, ia com pressa, para um hospital onde trabalha há mais de 30 anos. Mas a pressa para os goeses é relativa: ficou na conversa comigo, com o cão, com todos os jovens e não-jovens de meia-idade. 
Muito afável, bonita à sua maneira cansada, elegante no trato, dedicada a alguma causa. Vive sozinha, desce a Boa-Hora todos os dias e depois, de pernas em semi-chamas, sobe-a já mais devagar e talvez com menos jeito para o diálogo assim tão espontâneo e cheio de esperança que só as 8: 23 da Ajuda podem dar. 
E depois da reforma? "Volto para Goa. Isto aqui é só filhos da puta". E seguiu Boa-Hora abaixo, com um beijo de palma de mão nos lábios porque já era hora de ir ver se retirava pelas veias alguma filhadaputice aos portugueses. 

Thursday, July 19, 2012

Dona Gracinda



Levanta-se ainda o céu tem um véu de luto. Desenjoa o sono e a fome dentro de um tacho e abre a porta para a horta. Deixa sair os cães para a rua, arruma os detritos da noite anterior e senta-se a bordar num banquinho de madeira do lado de fora da casa. 

O dia chega devagar, primeiro uma ilusão de luz, leves pontos fugazes por cima dos montes, depois um banho que desce as casas, galga as árvores, trepa as ruas. Chega-lhe luz à ponta dos pés e decide levantar-se. Abandona as rendas para dentro de um saco, as agulhas caem-lhe para o meio das couves tronchudas – só mais tarde, no final do dia, as procurará com medo de ter perdido a memória. 

Procura o fermento congelado, tira-lhe o saco que o envolve, dissolve-o em água e deixa-o em repouso. Depois traz vários sacos de farinha e deita-os em redondel por cima de uma arca antiga. Mistura-lhe o fermento e mexe. Primeiro, com cuidado, depois em gestos largos e fortes, como se deles dependesse a sobrevivência do mundo. O sal depende dos humores. Às vezes há quem diga que saiu demasiado salgado e ela enche-se de brios e defende que ao pão há que juntar a dose certa de sal, nem mais nem menos, a conta que alguém, há muitos milhares de dias atrás, lhe ensinou. Envolve a massa com uma toalha fina e deixa-a a descansar por 3 horas, como uma criança que pede sono. 

Põe uns botins, lava a cara e entrega-se aos desvarios da terra. Surpreende-se com a terra. Coisas que desmesuradamente florescem sem que ela o esperasse; outras, tratadas com afecto, teimosas no persistir de uma existência sem flor nem fruto, apenas um caule nervoso, sem substância. Diz-mo, quando me vê, entre a incredulidade e a admiração pelas coisas que não são matemáticas. 

“Estas aqui, dei-lhes água durante semanas, cuidei delas, cortei-as e não apareceu nada. Quem é que manda nisto?”

 Às vezes cala-se, muitas vezes cala-se, olhos nas mãos na terra, as mãos nas raízes, os olhos nas raízes, inspecciona as razões, põe a contra-luz, quer compreender. 

“Olha, esta nasceu por acaso, nunca plantei nada disto, quando dei por mim tinha a planta tão alta que se vê do monte” 

Quem, de entre nós, pode explicar os cios consecutivos da terra? Humores, desamores, químicas que só o sol, a água, o vento e a ternura das mãos ou o acaso poderão saber. E até esses, todos juntos ou individualmente, não explicam tudo.

Monday, December 19, 2011

Amo o que está invisível aos olhos do mundo: o vento que deixa as folhas da árvore em madrugadas sem fim, o gesto de quem vive dentro de uma mulher, a pequena dor das coisas que não se perdoam. Amo o fogo posto no coração, de quem alimentou uma tristeza dentro da sua demência. Amo a frase perdida, que podia mudar o instante. Amo sem amar, numa desilusão cheia de dias e meses. Amo sem fronteiras em países que metem nas montanhas uma subida ao lugar dos condimentos. E é, entre fugas ao abismo e alegrias sem fim, que te vou amando. Sem razão nem palavras. Um dia que esquece que vai ser noite.

Tuesday, November 08, 2011

Morte


“Isto vai ter de acabar”, disse de si para si. “Já não somos os mesmos, a alegria não é a mesma, até a tristeza parece mais triste”. Respondeu: “Eu sei, eu compreendo…”. “Mas não és tu, sou eu…”. “Não, sou eu, tu ainda…”. “Eu já nada, nem um mililitro de lágrimas…”. “Nem um peidinho ao entardecer, nada…”. “Pois é, nem um peidinho ao entardecer…”.

Agarrou na pistola, fê-la subir à altura dos ombros e disparou. Caíram em estilhaços os vidros do espelho sobre as pantufas em cima do bidé. E nunca mais leu poesia.

Tuesday, September 06, 2011

O estranho mundo da realidade

Houve um homem que, cansado de olhar para o número de amigos que tinha no facebook, decidiu sair de casa. À saída do prédio, uma luz estranhíssima intrigou-o. Pôs os óculos 3D que guardava da última sessão de Harry Potter que tinha visto, tirou do bolso o iphone 4 e foi ao google perceber que estranha luz era aquela. A internet explicou-lhe: havia uma estrela chamada Sol que, diziam as últimas modas da ciência, iluminava a parte do mundo onde o homem vivia. Achou graça à descoberta e quis voltar para casa, tal era a experiência inovadora que vivera. Mas depois lembrou-se que tinha uma utilidade chamada "foursquare" que queria utilizar. Andou 10 metros cheio de medo do que as ruas podiam fazer-lhe, sacou do telemóvel e enviou para os amigos do twitter a informação: estava, de facto, na rua, e avisava o mundo do momento inacreditável: "I´m at pedragulho mijado ao pé do caixote do lixo". Os amigos virtuais responderam-lhe logo: "tu és o maior, não há quem te segure". E ele, com muito cuidado, voltou ao prédio e entrou em casa. Pena ter-se cruzado com um vizinho que o chamou para ir ver a bola ao café, acontecimento social de tal forma perigoso que se apressou a inventar trabalhos urgentes, o mau tempo que as negras nuvens adivinhavam e aquela dor nas costas que o impossibilitavam de outras aventuras. Chegado a casa, abriu o computador e contou tudo no blogue. Um dia desgastante.

Saturday, August 06, 2011

Poema

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.

E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.

Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?

O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.


Mayakovsky, 1927

Friday, July 29, 2011

Uma receita para os não-sóbrios

Sempre tive a tendência para saltar passos na aprendizagem - desse facto, surgiu este cérebro meio macerado. Na arte da culinária não fui diferente: passei directamente do esparguete com atum para a criação de pratos nunca antes imaginados (provavelmente por não fazerem sentido nenhum).
Tenho até já alguns "signature dish", que, por motivos óbvios, não revelarei. O último, no entanto, poderá ser partilhado, porque não tenho a certeza de que possua capacidade bastante para a imortalidade: puré de farinheira com legumes em molho reduzido de vinho encorpado com resquícios de rolha do Baixo Alentejo e terra de legumes mal lavados.
E reza assim: cozem-se duas cenouras pequenas, meia courgette, um pimento laranja e um pimento amarelo uns bons 15 minutos, para que os bastardos fiquem entre o duro e o amolecido. Retiram-se. Aventam-se para um wok (que está muito na moda) cheio de margarina capaz de originar dois ataques cardíacos consecutivos e espera-se que, na orgia dos enroscanços, eles amoleçam e façam molho. Aí uns 10 minutos, misturando lume brando com lume forte só para o efeito-surpresa. No meio do namoro, corta-se uma farinheira alentejana aos pedaços e atira-se para o colchão de vegetais numa espécie de pornografia alimentar para maiores de 25. Baixa-se o lume para que o sexo não gere queimaduras e deixa-se em namoro uns bons 10 minutos. Quando a loucura já ganha laivos de promiscuidade inaceitável, verte-se um copo (generoso) de vinho branco e acalmam-se as hormonas dos meninos. Depois fica ali tudo a embebedar-se (eles e nós). Retira-se, faz-se uma decoração muito paneleira (mas sem a paneleirice da salsa) e serve-se.

O agrado do comensal será inversamente proporcional ao nível de sobriedade.

Bom apetite.

Thursday, May 26, 2011

Olhó tuga nas Américas!

"Portuguese Day" em Wall Street. Parece que estou a ver o Teixeira dos Santos com umas chouriças ao pescoço a atirar sandes de torresmos aos engravatados lá em baixo, enquanto canta o Fado da Mariquinhas com um lenço do Minho na cabeça. As pingas do chouriço a cair nas cabeças dos americanos e um cheiro a queijo de Castelo Branco por todo o anfiteatro. "Disgusting!", diz um americano menos sensível às peculiaridades dos convidados. "Tá calado, filho da puta, antes que te enfie um pau de marmeleiro pelo wall street acima!", reage Teixeira dos Santos, visivelmente alterado por aquela falta de respeito e hospitalidade duvidosa. Nisto, parte tudo para a violência! Saltam alheiras de Mirandela, leitões aos guinchos, gente a fugir de um javali em fúria, o Nasdaq em perigo, os computadores pelo chão, dois beirões em cima dos plasmas a cortar nacos de presunto, um cheiro pestilento fruto de um alívio anal de um minhoto mais dado aos desvarios das couves tronchudas. "We have to get out of here fast! Follow me!", aponta o Rei de Wall Street, enquanto se desvia de um Galo de Barcelos em fúria. "Falas de mim? Tu falas é da puta da tua mãe, americano do caralho!", grita um boi barrosão que tranquilamente comia as impressoras, os faxes e os iphones. Broas de milho, pães de Mafra, bolas, paposecos, carcaças, uns atrás dos outros lançados pela facção dos alentejanos que por esta altura tinham aberto o garrafão de tintol no meio da arena e aprestavam-se para abrir o cestinho de verga com o farnel completo. "Do you have any kind of cheese, portuguese little guy?", questiona um engravatado já com o cabelo coberto de queijo da serra e a gravata encharcada pela gordura do presunto de Lamego. "Vai comer para o caralho, pá, isto é só para a gente" e atira o americano borda fora para a rua, onde foi atrolepado por um táxi que o deixou feito linguiça. Quando chegaram as televisões, Teixeira dos Santos, ainda desgrenhado, sujo dos pés à cabeça, com um bacalhau na mão e pedaços de feijoada a escorrerem-lhe pelo cabelo, muito calmamente afirmou: "acho que está na altura de irmos todos para casa".

As silly seasons

Sou aquele tipo de energúmeno que chegou tarde ao fenómeno das séries. Sempre fui um vagabundo em frente à televisão: pouco fiel, pouco fiável; bastava um qualquer rabo de saia (que é como quem diz: um qualquer anúncio extraordinário) para que desistisse do programa aclamado pela maioria.
Nunca segui as séries anos a fio, esperando religiosamente todas as semanas um novo episódio - nem percebo quem consegue tal feito. Dava em doido se o fizesse. Para mim, agora que cheguei definitivamente ao mundo do seriado (gosto tanto deste lado rede record em mim), não há nada como sacar uma série no isohunt e vê-la de enchofrada (inventei agora mas parece-me ter futuro) pela madrugada adentro.
Foi assim que, nos últimos 5 meses, arrasei com o Weeds, House, Curb your enthusiasm, Sopranos e agora estou a dois do fim do Lost. Deixem-me falar-vos do Lost: uma grande ideia de gente sem unhas para manter os pratos todos no ar. Ainda não vi o final, estou a adiar para ter mais gostinho, mas esta última temporada é daquelas coisas que não deixam dúvidas a ninguém: os homens já não sabem o que fazer com aquilo, então inventam, metem coisas novas, coisas estúpidas, coisas impensáveis, coisas anormais, coisas. Para que no fim uns idiotas achem que aquilo é genial e misterioso. Chegou a ser, sim. Nas primeiras temporadas. Ah as primeiras temporadas do Lost (vêem como entrei nisto de forma apaixonada?).
A minha mulher diz-me que eu vivo as séries como uma paixão assolapada, nunca como um amor que dura no tempo. Diz que vivo em obsessão. Concordo. Mas eu também tenho mais que fazer do que andar a amar um gordo careca mafioso, uma gaja boa que vende droga, um careca judeu, um médico drogado ou um conjunto de paspalhos que vêem um fumo negro e descobrem o segredo miraculoso da existência.
E agora vou ali acabar de ver aquilo que é para, como um bom romance de férias, me esquecer logo a seguir.

Sunday, May 08, 2011

Um poema horrível

Sou feito de divergências comigo próprio
Paradoxos entre a infância e o estado adulto
entre mim e mim
sem que uma voz sobressaia e ganhe a noite.

Por exemplo: nasci em Lisboa mas fui às duas semanas viver em Abrantes
Por exemplo: vivi e cresci em Abrantes mas fui aos 17 para Guimarães, aos 18 para Lisboa (berço, berço) e aos 21 para Amadora. Aos 29, estou em Queluz e só Alguém sabe onde irei acabar.

Por exemplo: vivo num dos lugares mais populados do país e no entanto acordo sempre com o som dos pássaros e o cheiro de eucaliptos
Levanto-me, venho à janela e vejo coelhos e gatos, vejo flores, céu aberto e um sol que quer perdão
Pássaros passam em voo rasante aos olhos e há quem jure que vê a erva crescer
Eu detenho-me nos vários tons de verde que existem e não sei.
 
Tenho dias em que acredito que posso mergulhar da minha janela para uma piscina de verde e sair do outro lado, no centro da terra, onde vivem, angustiados, todos os que sofrem sem saber porquê
Há nisto a doce ternura de uma geografia dos sentidos mas há também a enorme imponderabilidade das coisas que desconhecemos.
 
Sou isto ou aquilo? Temática já por tantos adulterada e corrompida e no entanto tão pura, tão humana, tão só.
 
Havia momentos em que os cheiros, os sons e as imagens pareciam mais nítidas, talvez por saber menos coisas - o mundo era mundo e chegava. Hoje, fechado entre as quatro paredes do mundo burocrático, tenho ainda assim os esgares em que levanto as pedras milenares e surjo limpo de impurezas. Como se lavasse a alma. Como se, de repente, o mundo voltasse ao ponto em que um cordão umbilical me lembrasse de onde venho. Como um choro por dentro. E perco a bússola das palavras.

Monday, March 14, 2011

Para comer como se comem as coisas boas, com as mãos

Já alguém se deu ao gozo supremo de fazer uma viagem no tempo e consumir de forma selvática o álbum dos Low, "I could live in hope" (1994)? Não? É muito provável que o meu caro esteja errado mas não quero ferir susceptibilidades, até porque eu faço esta viagem temporal de uma forma anacrónica: viajo no tempo para descobrir lá o que lá nunca ouvi. Ou seja, vou de viagem a um lugar antigo para conhecer o que não conheci quando lá vivia. O que torna tudo ainda mais apetecido, embora, de certo modo, frustrante, porque a ideia de ter passado 17 anos sem este assombro luminoso é qualquer coisa que magoa lá não sei bem onde, no lugar dos prazeres.

O álbum vai por ali fora, sem dar satisfações a ninguém, meio desinteressado até, pulsando, pulsando, subindo na onda, deitando no chão, levantando no ar, puxando para perto, abraçando, comendo, largando no espaço, deixando voar, gritando no alto, caindo em mergulho, mergulhando em voo. Quando se dá por ela, está-se com o corpo todo marcado a sal e sol, cheio de asas nas costas e pombas nos pés. Não, isto está bonzinho. Vão lá ouvir que vos faz bem. Eu começo a cantar, o resto fazem vocês:




They tell you come tomorrow

Nothing for you now
You listen so intently
And slide


Hearing only yourself
You wait for the truth
How can you get it
When all you do
Is slide?

Thursday, December 16, 2010

Não há velhos sem novos

Tenho 29 anos, a idade que os velhos têm para a minha condição mental. É feio, o número, irrita-me. Não pelo passar dos anos, que eles tendem a ter essa absurda forma de ser: passam. Mas pela estética: 29. Os números não se tocam. Fechados numa cama, o "2" e o "9" serão namorados com coisas por resolver. A perna do 2, imaginando uma mulher, está em sinal de recepção ao corpo do homem, a chamada, em linguagem romantico-patética, "cadeirinha". Mas repare-se no "9", tão independente da chamada feminina, mantém-se hirto na sua posição, quase indiferente, tocando-lhe apenas nos pezinhos. 29 são dois namorados com problemas por resolver. É possível que o "9" esteja neste momento, enquanto chove lá fora e a noite faz o seu papel de transição e dilema, reflectindo sobre a sua condição, os seus problemas mais latentes, como a conta do gás, o sem-abrigo que de manhã estivera na estação de comboios e que com um olhar mais triste deixou o "9" com sentimentos de culpa, o carro que faz um barulho estranho, aquela senhora que vende flores como se fossem beijos, as calças que queria comprar, a chegada do Natal e a necessidade de rir, dar prendas e fingir uma felicidade. É possível. Ainda assim, enquanto voam nesse quarto as questões do "9", doem os choros da "2" por estarem frios e distantes os pés do seu homem. O 29 é, de facto, uma belíssima e extraordinária merda.

Já do 30 tenho medo. Se é verdade que o "0" quase se funde com o "3", a ideia que o número tem é assustadora. Se eu chegar aos 30, façam-me um favor: comprem-me uma algália.

Thursday, November 11, 2010

O homem do Saldanha

Morreu o homem que me dizia olá, quando de noite passava por ele a caminho de algum sítio de que não me lembro. Vários sítios, vários olás. Nunca adeus, porque a surpresa do gesto era de assimilar, nunca de expelir. Vi-o em noites em que levava dentro de mim vários adeus e recebia aquele olá como uma esperança. Disse olá à esperança. Disse adeus à esperança. E ele ali, entre o adeus e o olá, sempre.


O olá morreu. Venha o adeus. Adeus. A deus.

Tuesday, September 07, 2010

O país das maravilhas

Dizem-me, desde que nasci, que sou a mulher mais feia do Mundo e, desde que nasci, eu aceito a frase como uma inevitabilidade que não posso contrariar. Não quero contrariar, não sei contrariar. Até hoje.

Desde pequena habituei-me a aceitar as frases alheias como minhas e, de tanto as absorver, muitas vezes perco-me em divagações sobre quais são, de facto, as da minha cabeça e quais as dos outros - elas misturam-se no rio de veias que sobe do coração ao cérebro, desce ao peito, vai aos olhos, morre na boca e seguem juntas numa barcaça feita de enganos e desvarios rumo a algum pensamento que nunca chega.

É por isso que aqui estou, hoje, dia de dizer ao Mundo que talvez discorde, mesmo que a medo, dessa concepção de mim como a maior de entre as mais feias - serei, sem pena de punição, uma mulher que por uma vez discorda do que o Mundo quer dizer e fazer de mim. Não tenho pretensões - pelo menos não mais do que qualquer outra mulher - à beleza como estado terminal e inequívoco, como prova de coisa alguma que justifique a mediania da existência; é só que hoje me sinto mais bela do que nos outros dias, me sinto mais verdadeira e mais mulher e mais criança do que nos dias que já passaram e dos que passarão, assim que o futuro se transmute em presente para acabar passado. Hoje acordei a sentir mais o cheiro das plantas e das flores que tenho na varanda, a amar mais a música que todos os dias me traz do sono e me transporta para este lado do espelho, a perceber melhor aquela mulher que do outro lado da rua rega religiosamente, com hábitos minuciosos e precisos, todas as milhares de florzinhas e pétalas que fazem daquele quintal a sua nova ideia de paraíso. Acordei mais apaixonada por este homem que dorme e acorda e se levanta e deita todos os dias nesta cama - um homem comum, não diferente de tantos outros que, noutras camas e noutras vidas, se levantam e deitam e acordam e dormem ao lado de mulheres iguais ou mais feias ou mais belas do que eu.

Olho-o pelo espelho e sinto o sangue açucarar-se-me quando o vejo dormir, quase criança, encostando o ouvido à almofada como se quisesse ouvir os sonhos que nela habitam. Amo este homem, hoje, a sua pele, a barba, os olhos fechados olhando para dentro, as mãos em repouso, os braços em repouso, a alma a dormir e eu a sentir-me a guardiã de todas as belezas do Mundo.

Olho-me no espelho e quase não me reconheço. Não fosse o sinal de nascença que trago como marca e prova de um dia ter vivido por entre a carne da minha mãe e talvez eu hoje dissesse directamente à minha imagem: "não, tu não és eu nem eu sou tu, somos ambas nós", talvez eu assumisse perante aquela que me olha de frente e não sou eu que quem acordou hoje foi a mulher mais bela que o Mundo já viu.

Wednesday, July 21, 2010

Respiro-me

A minha vida é o que fizeram dela: uma avenida de rios e mares entrecruzados, ilhas de abrigo e velas para quando o vento estiver desperto. Não é um cais nem uma duna ancorada no sol, não são árvores estendidas em altura sem movimento perpétuo que as faça voar e arrancar do solo os braços que as fazem dormentes de sonhos. É, antes, uma nota que ecoa, bem acima do plano das nuvens, entre o destino horizontal e o horizonte distante.
Não fui eu que a moldei, embora de mim exale, como nébula, a ideia de a esculpir consoante os meus desígnios e os meus quereres. Puro engano. Ela vive para além de mim e morre para lá de mim. Eu sou só o corpo que cumpre as direcções por ela escritas e escrevo-me porque é ela a mão que dirige. Sou nota, sou palavra, sou gesto de um cérebro que arquitecta, ao som e à escrita e ao movimento que me transcendem e me ultrapassam. 
A minha vida sou eu, sem mim: um barco vogando à mercê das marés e de um homem que grita do fundo do mar: uma voz embrulhada no borbulhar das águas sonhando um som no destino da visão de luz. Mas mesmo à superfície, se chega um pequeno nenúfar de voz humana, logo é abafada pelo deserto aquático, pelo azul das ondas. Talvez que então outro náufrago por ali dê à costa, vindo de lado e de maré nenhuns, perdido de sol e de rebentações, e, pelo fio molhado da voz submersa, me traga ao seu encontro. E talvez então morramos abraçados no espaço, voando de ondas em ilhas, nadando entre as estrelas, para a ilusão de sermos maiores que a vida.

Thursday, July 15, 2010

O nunca de amanhã

Corre-me um fio de fim por este corpo
que sobe
desce
consoante as ondas e as horas.
Nas marés,
ele avança com a potência das coisas impossíveis.
Na orla, morre de areia.
E, no fio, entre ondas e margem,
eu deito-me e recebo o tudo e o nada.

Monday, May 03, 2010

Nós

Isto que aqui vemos é de tal forma arrebatador e verdadeiro que nenhuma palavra humana, nenhum pensamento sequer, se pode comparar ao gesto, todo ele ternura, comoção, beleza.
O que não é normal é a indiferença.

Monday, June 08, 2009

Coisas

A Dona Ermelinda, do 3º A, não me respondeu ao Bom Dia que lhe lancei, quando nos cruzámos no elevador. Estou triste. A Dona Ermelinda é possível que também esteja. Talvez seja por isso que não me respondeu - é provável que nem tenha ouvido o Bom Dia, perdida entre reflexões profundas sobre as causas da sua tristeza. A Dona Ermelinda provavelmente não se chama Ermelinda e nem sequer deve ser Dona de coisa nenhuma. Mas há que dar nomes às coisas e a coisa da Dona Ermelinda já deve andar há anos sem ver um néctar de pêssego. Ou de frutos silvestres. Se calhar é por isso que a Dona Ermelinda está triste.

Saturday, May 02, 2009

O dia do trabalhador

Qualquer dia, um dia destes, um dia qualquer no próximo século, não tem de ser já, hei-de ser porteiro de uma discoteca concorrida de Lisboa. Não é pelo dinheiro, que até acredito que seja interessante, nem é pela possibilidade de dar dois murros bem dados em gente imbecil, é pela questão do poder. Pura e simplesmente, o poder, sim. Não há gente mais poderosa nos dias que correm, tirando os arrumadores, que os porteiros. É poder por todo o lado e mesmo assim – e era aqui que eu seria vanguardista na arte – são todos macambúzios. Ao menos, se fosse eu o porteiro, ria-me de vez em quando, quem sabe não faria mesmo uma mini-actuação circense enquanto os bêbedos esperavam a sua entrada; cuspia fogo, engalfinhava 3 litros de cerveja em 10 minutos, despia-me, fazia o pino, entregava pizzas, cantava o fado, todo um manancial de possíveis diversões que os porteiros andam a desperdiçar com aquele ar sombrio de quem acabou de cagar as twin towers.
Isto, perguntam os leitores, vem a propósito de quê? Vem a propósito, queridos 3 leitores, da noite de quinta-feira, véspera do dia do trabalhador, noite no Cais Sodré, Musicbox, gente por todo o lado e uma fila. Uma fila que ia, de pirilau, desde o túnel até ao outro lado, ao Liverpool. Magotes de bípedes, quase todos entornados, olhando esperançoso para a porta da discoteca. Talvez pensando que um dia, um destes dias, um qualquer dia no próximo século, iriam finalmente poder entrar, beber um copo e dançar. Ideia de tal forma absurda que desde logo foi sendo aniquilada pelos porteiros do dito estabelecimento, enquanto iam abrindo cordinhas para os amigos passarem. E se eram muitos, os amigos! Dava para encher o Estádio da Luz com os amigos que os porteiros iam deixando entrar e talvez sobrassem ainda umas centenas para irem comprar roupas à Zara do outro lado da avenida.
Nisto estávamos, enfiados no pirilau da fila, anónimos sem capas vip nem cocaína para suborno, quando a lógica abstracção da noite ébria me deu a ideia – genial, admito – de ir beber um copo ao bar ao lado do Liverpool e dar tempo ao tempo, que os outros, os que estavam connosco, faziam o obséquio de pirilar. Copos aqui, cigarro acolá, mija nas escadas, tempo para fazer tempo para chegar a tempo de entrar no antro da caixa de música, conversa, isto e aquilo, pede lá mais uma, quanto é?, se calhar vamos ter com os gajos, se calhar já entraram, é chato eles estarem lá e nós aqui, esta está fresquinha, olha os gajos à espera mas esta está a entrar bem, fumamos só mais este e depois vamos. Fomos. Os bípedes tinham conseguido andar dois metros. Ficámos muito felizes e quase agradecemos ao porteiro tão grande gentileza de ter deixado entrar umas 7 pessoas em 40 minutos. Obrigado, porteiro.
Depois de 20 minutos a ter sede, conseguimos entrar. 8 euros para duas imperiais mijadas mas tudo bem, o que vale é que dia do trabalhador. Pista de dança, olhar em volta: o Sam the kid observava sobranceiro os restantes bípedes, Leonor Pinhão bebia o 50º vodka tónico da noite enquanto, no palco, à frente das imagens que pretendem ser alucinantes, João Botelho e uma corja de actores dançavam desenfreadamente levados de mansinho na crista daquele pó que é muito bom para as rinites alérgicas. Olha ali o gajo dos Cool Hipnoise de fato Gucci! E ali, naquele canto, o Rochemback com duas companhias voluptuosas, além da barriga! Viste a Beatriz Batarda? Não vi, não, que estava empenhado em conseguir em simultâneo dançar e segurar a imperial de forma a que não fosse ela a beber-me.
Gastas as rifinhas alcoólicas, mais uns passinhos de dança nos meus 30 centímetros quadrados de espaço, e a melhor ideia da noite: e se a gente bazasse daqui?
O porteiro desejou-me uma boa noite e agradeceu-me. São muito simpáticos os porteiros.

Saturday, April 25, 2009

O cri cri da crise

Como isto está, qualquer dia as pessoas começam a pedir autógrafos ao Camilo Lourenço e o Aimar não passará de alguém com um corte de cabelo parvo.
Acordo e atiro-me para o banho. Antes ligo o rádio e logo me inundam ondas cheias de pessimismo, lições sobre gestão financeira e possíveis conselhos para um suicídio em massa. Maço-me. Faço por esconder dos ouvidos as palavras dos especialistas na crise, deixo que a água corra sobre mim, inundo-me de optimismo. A vida, sem a frase montypythoniana, parece ser uma terrível construção de dias com destino traçado. Com ela, torna-se-me tudo suportável, até o peso do sono que se lava com gel de banho e duas ou três músicas cantadas a má voz, péssimo timbre e uma viagem de memórias que dura o tempo possível até a mão decidir fechar o banho numa torneira quente.
Puxo o elevador, e o som abafado do seu voo vertical traz-me e leva-me para a realidade. Sempre com o olhar, ressalve-se, de quem olha para o lado mais luminoso da vida. Para o lado bom.
Na rua, alguém lembra que o dia podia estar melhor. Rio-me. O rio que corre por dentro de mim não tem tempo para parar na margem das palavras inúteis e desesperadas. Sigo em frente pelo caminho mais longo das horas, enquanto dois cães se cheiram e não conhecem, nunca ouviram falar, numa tal de crise. É bom parar de vez em quando, fecharmo-nos no nosso próprio cinema, iluminar os dois cães com luz real, do sol, e ficarmos ali, espectadores das cenas que nunca chegaram a passar no filme. Este eu acho que o Ministério das Finanças não viu. Talvez tenha preferido um mais dramático.
No carro, empilham-se em frente, atrás, de lado, conjuntos de gente irritada, quase sempre sozinha, ouvindo as novas que o dia e as notícias trazem e têm para oferecer. Prefiro a velha cassete. Hoje vai o Camarón para o trabalho, amanhã o Hendrix, depois o Manu Chao e todos eles sem conhecerem o PIB nacional.
O Mundo anda tão preocupado com o que os outros têm para dizer que se esquece de se esquecer. Ontem, hoje, amanhã todos juntos num pacote noticioso que arma as pessoas para as conversas em corredores sem fumo e risadas entre twitters e messengers.
Amanhã levo um "Este dia está fabuloso" para as ruas. E espero que não me levem a mal.

Thursday, April 16, 2009

Kentucky fried entremeada

Ali, onde agora vive um senhor mamarracho de nome Colombo, era um baldio de terras aos solavancos, couves, armaduras de príncipes antigos e casas da idade do Fernando Pessoa. Ali, onde a esta hora senhoras elegantes e meninas petulantes encontram mais uma fantástica bugiganga para encher a vaidade dos quartos e salas de estar, foi, um dia, um parque arcaico de estacionamento, um caminho tortuoso até à catedral e uma enorme sala de repasto benfiquista. Ao ar livre, como tinha de ser.
O carro estacionava-se a 2 quilómetros do Estádio e a partir daí punham-se galochas e enfrentava-se o lamaçal. Antes de chegarmos ao repasto, deliciava-nos todo aquele benfiquismo em forma de gente: grupos de 10, 15 pessoas faziam círculos imperfeitos em volta de uma fogueira, de um fogareiro e de uma panelona digna de reis que no seu interior aquecia e amparava um bruto cozido à portuguesa ou, para os mais sensíveis às vicissitudes das transformações gástricas, um belo de um caldo verde, recheadinho com chouriço do melhor que podia haver; para beber, tinto, que era a cor e bebida naturais de quem, por dentro, levava acesa a chama imensa.
Normalmente, eram homens, pais e filhos, poucas mulheres e ainda menos filhas. No entanto, a equipa feminina de cada família tinha também o seu ofício, visto que vinham das mãos delas os repastos que tanto aconchegavam o estômago e o coração dos seus mais-que-tudo. A fome e a sede, ali, naquele sítio onde hoje ardem galinhas de Kentucky e carnes do Sr. MacDonald, não eram mais do que a medida certa para o impulso de noites de glória. Começava com o ritual de comer e beber; acabava em goles de golos.
Para quem não levava metade da casa atrás, esta era uma visão que aproximava e apaixonava e servia de entrada ao que viria a ser a refeição, sentados que ficávamos em banquinhos corridos de madeira rodeando as casas de repasto, quase sempre entregues a famílias inteiras. O ritual era simples: fazia-se um rectângulo de balcões, em volta bancos para os benfiquistas não comerem de pé e lá dentro era uma festa de cerveja, vinho e cheiros de carnes com muita gordura. Para os meninos, trina de laranja, para os pais, vinho em barda, que a noite era uma criança. Nos entretantos, enquanto se trinchavam pedaços de entremeada, febras e as sopas iam ao lume, e regados, bem regados, a cerveja, a tinto, a branco e, para os mais friorentos, a abafadinho, discutiam-se onzes, dizia-se mal do treinador (sim, já na altura acontecia) e ansiava-se pela hora da visão gloriosa de um relvado iluminado por 4 focos de luz. Os pais faziam a sua pedagogia, perguntando aos filhos o nome dos 11 heróis que iriam entrar em campo, os filhos acertavam em 3 ou 4 jogadores mais conhecidos e de tempos a tempos até aparecia um que falava no nome de um jogador de um rival nacional. O pai não gostava, batia com o copo com força na madeira e gritava: "esse é lagarto, filho!" e o filho, que nunca se tinha apercebido de que os homens tinham a capacidade de se metamorfosear em répteis, bebia mais um gole de trina enquanto dizia para dentro que nunca mais abria a boca para dizer o nome daquele jogador.
E o mais bonito de tudo era quando, na mesma mesa, se juntavam avô, pai e filho. E todos eles, ali sentados em redor de um objectivo, apesar das idades, a sentirem o mesmo: a pulsação acelerada, a ansiedade, o nervosismo, a paixão. Todos eles com o coração da mesma idade.

Wednesday, February 04, 2009

César Monteiro

Quer começar por apresentar o filme?

- O filme apresenta-se a ele próprio. A minha cabeça esvaziou-se. O filme saiu-me da cabeça e está registado. Não tenho a noção de conjunto, do que está feito. Se calhar daqui a uma semana já tenho; é que ainda não o vi.

Nesta fase de montagem não tem, paradoxalmente, uma ideia muito mais precisa? Há um visionamento do que foi feito.

- Mas é parcelar e descontínuo. Trabalha-lhe sobre parcelas e não sobre a totalidade.

Também se filma em parcelas. O filme corresponde ao que idealizou, ao que começou por existir na sua cabeça?

- Sim. É um filme cheio de peripécias que deveria ter sido feito em 92. Foi inicialmente pensado para ser rodado em Paris e depois andou em bolandas. Por razões que têm a ver com produção, orçamentos, etc, foi-me proposto que fosse feito em Évora. Mas achei que não dava, a minha relação com a cidade... Depois pensei no Porto; andei a ver lugares e chegou a ser escrita uma versão portuense. Mas faltaram-me alguns apoios locais, nomeadamente da parte de cenografia, e optei por Lisboa.

Não deixa de ser interessante que, apesar de todas as peripécias, Lisboa continue a ser a sua cidade; mesmo sendo uma cidade diferente da que filmou nas «Recordações da Casa Amarela».

- Sim, mas o filme tem muito pouco de Lisboa porque ao fim da primeira semana de rodagem levou uma grande volta. Apareceu-me um actor, muito bom actor, que vinha para fazer um papel pequenino; achei que seria uma pena desperdiçá-lo e resolvi confiar-lhe a parte que me estava destinada. Era para ser uma viagem numa carroça puxada por um burro, uma espécie de périplo joyciano com visita a vários lugares. Resolvi mandar tudo às urtigas e o périplo ser confortavelmente narrado.

Mas continua a ser um périplo joyciano, no sentido de atravessar a condição humana?

- Sim, sim. O filme é maioritariamente falado em francês. Ainda pensei em fazer uma versão portuguesa mas não pude contar com os actores com quem me apetecia trabalhar, não estavam disponíveis.

Voltando à essência do filme e ao périplo joyciano. Quais são, no filme e para si, os pontos chave do percurso?

- É preciso que eu faça um pequeno preâmbulo. O objectivo era fazer o filme para comprar uma casa, não sei se me faço entender, ganhar massaroca. A fórmula que me deu dinheiro foi um contrato, vantajoso financeiramente, que assinei com o meu produtor para fazer este filme.

Filma, então, para comprar casas?

- Fiz este filme para comprar uma casa. Pode ser que faça outro para comprar uma segunda residência. Portanto, parece haver da minha parte um certo interesse no chamado investimento imobiliário. Isto é uma coisa muito segura; o filme é mais duvidoso. Para já há um pequeno paradoxo: não faço a mais pequena concessão ao comércio, ao público, embora um filme seja um objecto comerciável, com um determinado valor enquanto mercadoria. Mas aí, já ganho muito pouco.

Como assim?

- Poderia ganhar se me fossem pagos os direito de autor, se houvesse uma sociedade que se ocupasse disso e não há. Posso dizer-lhe que até hoje, em direitos de autor, ganhei trezentos e quarenta escudos e tenho mesmo o recibozinho que vou emoldurar.

Mas vive-se hoje uma fase diferente no cinema português. Com este filme ganhou dinheiro para comprar uma casa.

- Ouça, se me pagam para poder comprar uma casa suponho que não é pelos meus lindos olhos... Suponho eu.

Nunca questiona o seu talento?

- Eu não sei se tenho talento, começo por aí. Não me ponho essa questão, nunca na vida, quero lá saber! A única coisa que faço questão... Como costumo dizer, é merda mas é a minha. Deixar as minhas marcas. Num filme, no mundo.

Mas esse é um processo que envolve prazer? Os filmes dão-lhe prazer?

- Não me dão nenhum particular prazer. A não ser episodicamente. Posso entusiasmar-me com determinados planos, porque sinto que há uma conjunção de factores múltiplos favoráveis a um bom resultado. Dá-me imenso prazer ver o jogo de actores e a relação que estabelecem com a luz e com o resto.

Faz filmes exclusivamente porque precisa de ganhar dinheiro, não os faria de outra forma?

- Não.

O que é que gosta de fazer?

- Nada. A sério.

O que é o seu ideal de um dia perfeito?

- [Hesita] Não sei se há dias perfeitos. Sou sensível aos ruídos, à luz, às pessoas, mas não sou antropocêntrico. Estou cada vez mais céptico em relação aos seres humanos.

Está desencantado?

- Eu nunca gosto de ser muito afirmativo... Digamos que estou pouco encantado. Desgosta-me a sociedade da qual me tento excluir na medida do possível. Mas isso tem um preço, não é muito agradável. Não tenho à minha volta as pessoas que queria.

Essa margem de desencanto foi-se agudizando com a idade? Deixou de ser ingénuo ?

- Não sei se perdi inteiramente a inocência. Se não perdi inteiramente estou em vias de. Mas tento preservar o meu lado infantil. O mundo é das crianças.

O princípio das crianças é o princípio do prazer.

- Não tenho tido muita convivência com crianças. Sinto-lhes a falta. Acho que é o meu mundo. A sua espantosa capacidade de curiosidade e a sua espantosa capacidade de verbalizar o que vêem, o que ouvem e o que sentem.

Olhando para si não se consegue imaginar como foi o João César Monteiro Criança.

- Venho de uma pequena cidade de província, uma pequena cidade chamada Figueira da Foz, e estabeleci logo uma reputação que não era boa, devo confessar. Diziam que tinha comprimidos atómicos dentro do corpo, que era muito endiabrado. E dizia-se pior ainda: que eu era o terror da cidade. Fazia, em suma, as piores patifarias, coisas mesmo atrozes. Uma vez pus uma cana na porta de saída do autocarro para as peixeiras caírem. Outra coisa que também me agradava muito era apalpar mamas, sobretudo a criadas. E por isso fui punido com um bofetão. Tinha sete, oito, nove anos.

Uma hiper-sexualidade?

- Não diria tanto. Seguramente era a sexualidade difusa da idade. Outra coisa que eu gostava muito de fazer era levantar saias às meninas. Fui suspenso do liceu quinze dias.

Dava-se com rapazes ou com raparigas?

- Com rapazes. As meninas era só para espreitar debaixo das saias.

Qual é para si a grande diferença entre ter uma amiga mulher e um amigo homem?

- Bom... A pergunta é embaraçosa. Como não tenho amigos, nem amigos homens nem amigas mulheres, isso coloca-me alguns embaraços. Aceito mal algumas expressões, como “gosta de mulheres, gosta de homens”. Não é verdade que goste de mulheres. É rigorosamente verdade que posso gostar de algumas mulheres. Poucas. E homens a mesma coisa. Mas isto não responde à questão da amizade. Tratando-se de amizade não há diferença nenhuma. Só que, às vezes, com as mulheres acontecem outras coisas que já não têm a ver com amizade. Têm a ver com desejo ou com paixão. Evito falar na palavra amor. A diferença entre amizade e amor é que o amor é sempre, sempre exclusivo.

É um homem de muitas paixões? O cepticismo de que falou também se estende ao campo amoroso?

- Sou sensível às fraquezas da carne e normalmente fico-me por aí. A minha rota é uma rota de gratidão, «Obrigadinho por este bocadinho». Vai-se além disso uma, duas vezes na vida. Sei do que estou a falar porque já tenho cinquenta e oito anos - embora não pareça... Homens, nada!

Transporta sempre essa sexualidade à flor da pele para os seus filmes?

- Ah! Pois concerteza.

Neste filme como se inscreve o desejo?

- O desejo está inscrito no corpo do filme e na cabeça das personagens masculinas.

Parece que na sua cabeça as mulheres não têm desejo, são só objectos de desejo.

- Trouxeram-me uma vaca francesa para este filme, o que é que poderia fazer? Não tenho culpa nenhuma. Os actores eram muito mais interessantes que as actrizes e isso conta. Digamos que este é o meu primeiro filme misógino. O que não quer dizer que suceda no próximo.

Na sua cabeça está sempre tudo a mudar.

- Ai isso está.

Ao cabo de uma semana de rodagem decidiu alterar tudo com a chegada de um actor francês.

- Repare que foi ele que decidiu. Se não fosse aquele actor...Foi ele que fez mudar o curso das coisas.

Mas foi você que orientou a mudança das coisas.

- Mas esse é o papel de um cineasta.

Qual é a sua atitude? Mudar diariamente, adaptando-se às circunstâncias?

- Exactamente. É um processo muito pouco egocêntrico, isto é, há um ego que não impõe nada, que se deixa visitar como uma fêmea e que recebe as coisas.

Eu diria que é terrivelmente egocêntrico, está nos seus filmes de todas as formas. Mas enquanto cineasta há aqui uma pequena incoerência. No começo da nossa conversa falámos de si enquanto general e da equipa que existe para executar as suas ordens; agora estamos a falar das sugestões da equipa e da sua relação com o general.

- Eu faço uma distinção entre equipa e actores. A um fotógrafo peço que seja feita uma fotografia assim e não assado; isto é acordado e não tem discussão. Este é um filme feito com um projector e o resto com luz natural. O som acordou-se que era directo. Isto são coisas traçadas desde o início do filme. O relacionamento com actores é de outra ordem. No meu caso recuso a palavra director de actores, não sei dirigir actores, não quero dirigir actores. É uma relação de cumplicidade e empatia para que as coisas funcionem. Ou não. Se não se estabelece uma troca não há funcionamento possível. Foi o que aconteceu com a vaca francesa que me foi impingida pelos produtores. Neste filme, por circunstâncias várias, houve um óptimo relacionamento.

É mais sensível ao talento ou à componente humana?

- Sou sensível às duas coisas, tenho preferência por uma humanidade talentosa. Ainda agora tive um susto com um actor. Sabia que era talentoso, simplesmente apareceu-me num estado inconcebível, a cair de bêbedo e sujo. A minha primeira reacção foi «Este tipo vai para Paris, já!», e cheguei a falar-lhe nisso. Depois dormi sobre o assunto e preparei-me para o aguentar três ou quatro dias, era um papel pequenino, podia transformar a personagem dele num bêbedo insuportável. No dia seguinte ele apareceu-me lavadinho, vi-o num primeiro plano, fulgurante, pensei que ia bem com o outro e poupava-me trabalho a mim porque era eu que ia fazer o papel...

Não gosta mesmo de trabalhar, pois não?

- Não tenho o direito de dizer que não gosto de trabalhar porque o meu trabalho num filme é privilegiado, sou omni-senhor. Nesse sentido gosto. O que acontece é que não estava em condições físicas de suportar a dureza de um filme. Adaptei-o à minha debilidade física e até, de certa maneira, psíquica. Fiz um filme em cinco semanas trabalhando quatro horas diariamente.

Qual é o seu esquema, ensaia as coisas, prepara-as minuciosamente?

- Nem sempre sai, mas tento filmar à primeira. As coisas estão devidamente preparadas, sobretudo neste filme com sequências bastante longas- alguns planos têm dez minutos. Para os actores é formidável, nem sequer têm aquele aparato da luz...

A luz e a música são elementos fundamentais nos seus filmes.

- Sob esse ponto de vista, este tem coisas fabulosas. Tive sorte, apanhei dias de nuvens com vento e, como os planos são longos, as variações luminosas são muito grandes.

Filmar com a luz natural...

- É o grande iluminador, o Nosso Senhor...

Isso prende-se com uma ligação maior à vida e às pessoas de todos os dias?

- Sobretudo permite rodar com uma grande rapidez. Chegámos a filmar vinte, vinte e cinco minutos por dia. É mais que nas telenovelas sem ter o ritmo das telenovelas. Há só um ângulo, que foi aquele que escolhi, e não há mais nada, não há rede.

As coisas já estão grandemente definidas quando chegam à montagem?

- A montagem de imagem fez-se numa semana. O som dá mais trabalho.

Voltando à luz e às pessoas. De que estímulos é que se alimenta para a sua construção, enquanto cineasta e enquanto pessoa?

- Onde vou beber? Tirando a parte alcoólica da questão, alimento-me do que fui sedimentando ao longo dos anos, das minhas memórias, das coisas com que me fui cultivando. Livros, músicas, filmes, bacalhau com batatas...

E observa muito as pessoas?

- Agora menos.

Não me diga que as personagens da «Comédia de Deus» ou da «Casa Amarela» saem todas desses livros, dessas músicas e desses filmes. Está com essas pessoas?

- Um bocadinho. Quer dizer, há umas camadas sociais que não aprecio assim muito. O que resta de certas camadas populares, certas tascas antigas...

Porquê essas camadas populares? É a procura da simplicidade?

- Há um certo modo de estar, que curiosamente não é preconceituoso, um certo à vontade, até no modo de expressão, por vezes grosseiro, que me agrada. Não é um modo simples, é um modo franco.

Todas as entrevistas suas que li foram feitas por homens; a sua linguagem era, por vezes, grosseira - para usar o seu termo-, e mais próxima daquela que é a sua linguagem fílmica.

- Mas eu posso ser extremamente delicado.

O que é que o faz ser delicado?

- A alteridade, isto é, o reconhecimento do outro.

Significa que se eu fosse um homem e usasse outras palavras...

- Não, significa que eu posso ser extremamente delicado quando sou afectuoso, quando há um embrião de afecto. Sou uma pessoa doce, de um modo geral. Mas também tenho fúrias.

Tem um conhecimento e um controlo de si na doçura e na agressividade?

- Normalmente controlo-me; ou faço as coisas deliberadamente. Quando não gosto de uma pessoa, cinco minutos depois dou-lhe a entender isso mesmo, para que não haja equívocos; e quando gosto, utilizo os meus estratagemas.

Vai treinando?

- Um bocadinho. Agora como descobri que sou actor, um péssimo actor, mas enfim...

Acha mesmo que pode dizer isso de si? Até já ganhou um prémio muito sério...

- Acho que não sou um bom actor.

E realizador?

- Acho-me francamente bom, atendendo ao que há para aí...

Agora é actor...

- Sim, faço os meus exercícios. E como criei uma personagem, dá-me um certo prazer, na vida real, de vez em quando, comportar-se como o Senhor João de Deus.

Mas ele não é uma parte de si, um dos seus heterónimos? Há o Max Monteiro- Actor, o João César Monteiro- Realizador, o João de Deus- Personagem...

- É um personagem com determinadas características, um ser livre. Praticamente tudo lhe é permitido. Utilizo-o como um teatro. Por vezes torna-se chocante. É verdade que isto incide sobretudo em meninas ou em senhoras.

E como é que elas reagem ao seu treino de Senhor João de Deus?

- Digamos que em cada dez há uma que marcha. As outras nove manifestam pouco interesse na personagem e a personagem não se torna demasiado insistente. Não vale a pena pregar no deserto.

Você é muito mais lúcido do que parece.

- Toda a gente que me conhece sabe isso. De maluco tenho muito pouco.

Gosta de representar, então.

- Mas não acha que o nosso quotidiano é muito cinzento? Eu raramente me aborreço. Um dos meus prazeres é olhar para as meninas, vê-las passar, cheirá-las, extasiar-me com elas.

É uma relação unilateral.

- Felizmente é uma relação unilateral, senão não tinha mãos a medir!

Esse é o seu primeiro pensamento? Estamos aqui na esplanada...

- Sim, pode dizer-se. Se eu fosse um sucesso total, tinha de abdicar, não fazia mais nada. Tenho de catar melhor a vizinhança, talvez haja alguma mãe solteira nas redondezas...

Poderia viver num outro país, numa outra cidade?

- Pensei em ir viver para o Porto. Noutro país nem pensar! Não me imagino a viver em Paris ou em Barcelona.

É assim tão português?

- Sim, sim.

Os nacionalismo preocupam-no?

- Os nacionalismo preocupam-me. E o Bundesbank também. Não sou um nacionalista, tenho é ligações com isto. Por acaso, não especialmente com Lisboa.

Não especialmente com Lisboa? Quase parece um contra-senso, depois de o ver e de o ler.

- Cheguei à conclusão de que podia viver no Porto. Não poderia viver, ou viveria mal, em Évora ou na Figueira da Foz.

Do que é que precisa nos sítios para lá viver?

- Preciso de uma casa.

Também pode ter uma casa em Évora.

- Uma segunda residência, para os fins de semana. Preciso de uma ou duas mulheres, não mais, e de crianças, que até já podem estar feitas.

E crianças um bocadinho mais crescidas? Raparigas tenras como as que apareceram nos seus filmes.

- Gosto de crianças crianças. As adolescentes da «Comédia [de Deus]» sabem mais do que eu, foram muito bem industriadas e não são assim tão novas como parecem. Não é que tenha um gosto especial por crianças...; gosto de algumas. Até suponho que tenho uma; por acaso é rapaz.

Se fosse rapariga mudava alguma coisa?

- Mudava porque se trataria de um outro ser.

O que é que tenta passar ao seu filho?

- Tenho uma boa relação com o meu filho. Neste momento não faço grande coisa com ele porque não o tenho visto. Mas gosto de levá-lo a passear, impingir-lhe umas coisas, o gosto pela leitura, desviá-lo da televisão na medida do possível _ o que é difícil para um pai hoje em dia. Temos alguns gostos comuns, não necessariamente cinematográficos.

Ele vê os seus filmes?

- Vê, não estou seguro de que goste de todos. Mas isso para mim não tem importância nenhuma.

Há alguém a quem mostre os seus filmes e cuja apreciação crítica seja relevante?

- Tenho imenso respeito por alguns críticos de cinema. Que já morreram. Aqui há uns dez anos atrás havia uma pessoa que tinha bastante importância a quem eu mostrava os argumentos que escrevia, o Carlos de Oliveira. Morreu e não encontrei substituto.

Não me diga que nunca se sente inseguro?

- Acho que sim. Num filme, por exemplo, é uma coisa que toda a equipa sente. Tenho uns truques. Normalmente passam por... Bom, não devia estar a revelar isto... Faço umas birras e não sei quê. O intuito é, quase sempre, ganhar tempo, se se trata de uma cena mal pensada ou qualquer coisa no género.

Além da insegurança, revela sentimentos como a sensibilidade extrema ou a comoção?

- Por vezes sinto-me empedernido, mas ainda me consigo comover.

Lembra-se da última vez que chorou?

- Lembro-me que chorei depois de ter sido agredido por três ou quatro polícias. Chorei de raiva e de humilhação. Ainda por cima foi uma história disparatada. Eu encontrei um tipo que é deputado do Partido Socialista, por acaso um rapaz do Porto, e entrei com ele em S. Bento, na Assembleia, a conversar; depois, ele deixou-me num corredor e eu andei para ali sozinho até que, de repente, me saltam três ou quatro polícias em cima.

E agridem-no sem você fazer nada?

- Exactamente.

Está a falar a sério?

- Estou a falar a sério. Chamei-lhes logo Filhos da Puta, uma expressão que utilizo muito. Gosto imenso da expressão Filho da Puta. Tenho uma engatilhada há anos. O meu sonho é ser julgado em tribunal e quando o juiz disser «levante-se o réu», a minha resposta é «levante-se você, seu filho da puta». Agora, como para chegar até ao tribunal é uma maçada, estou a pensar metê-la num filme.

Seria óptimo para si viver numa anarquia.

- Seria bom para todos. A anarquia é uma coisa muito ordenada.

Qual é o seu ideal de sociedade?

- Sou por uma transformação radical da sociedade, por meios violentos. Se pudessem ser pacíficos tanto melhor, mas já se sabe que assim não se vai lá. Vai haver uma nova revolução, mas não nos mesmos moldes das fracassadas revoluções.

Não se sabe é quando.

- Todo o sistema capitalista está agónico, é um sistema autofágico. A revolução será menos classista e, se calhar, serão os próprios ricos _ deixe-me usar esta linguagem simples _ que vão ter de a fazer. O mal estar está perfeitamente instalado na classe dominante. A classe dominada tem os problemas do costume, de sobrevivência, etc; a outra tem toda a estrutura familiar desfeita, os filhos tresmalhados... Se não lhe quiser chamar revolução chamo-lhe, pelo menos, reciclagem do sistema.

Consegue imaginar-se daqui a vinte anos, com ou sem essa revolução?

- Consigo. Imagino-me na mesma.

Há vinte anos imaginava que iria ser o que é hoje, fazer o que faz hoje?

- De maneira nenhuma. Fazia uns filmezecos, sem pretensões nenhumas. Eu não melhorei; os outros é que pioraram. Piorou o cinema. Emergi por desmérito dos outros, não tanto por mérito próprio.

Vai fazer o culto do antigo? Dantes é se faziam bons filmes, escreviam bons livros, compunham boas músicas. Não há coisas que agora se façam que aprecie?

- De um modo geral não. Não vou ao cinema. Gosto de um iraniano, o Kiarostami, até lhe mandei um telegrama a dar-lhe os parabéns pelo prémio [em Cannes]. Na poesia fiquei-me pelo Herberto Helder, e gosto do Joyce.

Nós começámos por falar de um périplo joyciano. Se tiver de procurar a essência de si, como o Ulisses, o que é que encontra?

- O que encontro é uma coisa muito confusa e muito diversificada. O ser humano é múltiplo, tremendamente contraditório e não gostaria de catalogá-lo em termos de Bem e de Mal.

Quem estipula as balizas de Bem e de Mal?

- Como sou evidentemente ateu, sou eu que estipulo as minhas balizas de Bem e de Mal.

Nunca se agarra a nada quando se sente desesperado?

- Agarro-me à Ana! [a namorada, que está ao lado]. E agarro-me a uma garrafa de whisky. Enquanto cineasta é a mesma coisa; só que não me agarro à Ana, agarro-me aos filmes. Não é importante ter uma mente sã; só é importante ter um corpo são. Odeio a ideia de ser imobilizado pela doença.

Tem medo da doença?

- Tenho medo por várias razões. Inclusivamente porque não tenho assistência social, os médicos são uma fortuna, os hospitais, como diria o Baudelaire, são matadouros, e, como tenho medo, nunca adoeço. Apanho umas bebedeiras e no dia seguinte estou bom.

Do que é que tem medo, além da doença?

- Para ser franco, da miséria, da fomeca, de não ter onde cair morto e não tenho medo de morrer.

Tudo isto vinha a propósito das noções de Bem e de Mal.

- Sim. As noções remetem para uma atitude moral, não exclusivamente da esfera pessoal, também toca o cinema. Para mim o cinema não tem nada a ver com a moral, mas sim com o que é sagrado e o que não é sagrado.

O seu cinema, curiosamente, está cheio de rituais. O que é sagrado para si?

- O sagrado é o que toca a criação. Quer seja um filme, quer seja um filho. São os meus limites, a fasquia que não devo ultrapassar. Ultrapassar isso é matar, ou, se quiser, matar-me matando.


Entrevista por Anabela Mota Ribeiro (Dna), 1997