Saturday, April 25, 2009

O cri cri da crise

Como isto está, qualquer dia as pessoas começam a pedir autógrafos ao Camilo Lourenço e o Aimar não passará de alguém com um corte de cabelo parvo.
Acordo e atiro-me para o banho. Antes ligo o rádio e logo me inundam ondas cheias de pessimismo, lições sobre gestão financeira e possíveis conselhos para um suicídio em massa. Maço-me. Faço por esconder dos ouvidos as palavras dos especialistas na crise, deixo que a água corra sobre mim, inundo-me de optimismo. A vida, sem a frase montypythoniana, parece ser uma terrível construção de dias com destino traçado. Com ela, torna-se-me tudo suportável, até o peso do sono que se lava com gel de banho e duas ou três músicas cantadas a má voz, péssimo timbre e uma viagem de memórias que dura o tempo possível até a mão decidir fechar o banho numa torneira quente.
Puxo o elevador, e o som abafado do seu voo vertical traz-me e leva-me para a realidade. Sempre com o olhar, ressalve-se, de quem olha para o lado mais luminoso da vida. Para o lado bom.
Na rua, alguém lembra que o dia podia estar melhor. Rio-me. O rio que corre por dentro de mim não tem tempo para parar na margem das palavras inúteis e desesperadas. Sigo em frente pelo caminho mais longo das horas, enquanto dois cães se cheiram e não conhecem, nunca ouviram falar, numa tal de crise. É bom parar de vez em quando, fecharmo-nos no nosso próprio cinema, iluminar os dois cães com luz real, do sol, e ficarmos ali, espectadores das cenas que nunca chegaram a passar no filme. Este eu acho que o Ministério das Finanças não viu. Talvez tenha preferido um mais dramático.
No carro, empilham-se em frente, atrás, de lado, conjuntos de gente irritada, quase sempre sozinha, ouvindo as novas que o dia e as notícias trazem e têm para oferecer. Prefiro a velha cassete. Hoje vai o Camarón para o trabalho, amanhã o Hendrix, depois o Manu Chao e todos eles sem conhecerem o PIB nacional.
O Mundo anda tão preocupado com o que os outros têm para dizer que se esquece de se esquecer. Ontem, hoje, amanhã todos juntos num pacote noticioso que arma as pessoas para as conversas em corredores sem fumo e risadas entre twitters e messengers.
Amanhã levo um "Este dia está fabuloso" para as ruas. E espero que não me levem a mal.

Thursday, April 16, 2009

Kentucky fried entremeada

Ali, onde agora vive um senhor mamarracho de nome Colombo, era um baldio de terras aos solavancos, couves, armaduras de príncipes antigos e casas da idade do Fernando Pessoa. Ali, onde a esta hora senhoras elegantes e meninas petulantes encontram mais uma fantástica bugiganga para encher a vaidade dos quartos e salas de estar, foi, um dia, um parque arcaico de estacionamento, um caminho tortuoso até à catedral e uma enorme sala de repasto benfiquista. Ao ar livre, como tinha de ser.
O carro estacionava-se a 2 quilómetros do Estádio e a partir daí punham-se galochas e enfrentava-se o lamaçal. Antes de chegarmos ao repasto, deliciava-nos todo aquele benfiquismo em forma de gente: grupos de 10, 15 pessoas faziam círculos imperfeitos em volta de uma fogueira, de um fogareiro e de uma panelona digna de reis que no seu interior aquecia e amparava um bruto cozido à portuguesa ou, para os mais sensíveis às vicissitudes das transformações gástricas, um belo de um caldo verde, recheadinho com chouriço do melhor que podia haver; para beber, tinto, que era a cor e bebida naturais de quem, por dentro, levava acesa a chama imensa.
Normalmente, eram homens, pais e filhos, poucas mulheres e ainda menos filhas. No entanto, a equipa feminina de cada família tinha também o seu ofício, visto que vinham das mãos delas os repastos que tanto aconchegavam o estômago e o coração dos seus mais-que-tudo. A fome e a sede, ali, naquele sítio onde hoje ardem galinhas de Kentucky e carnes do Sr. MacDonald, não eram mais do que a medida certa para o impulso de noites de glória. Começava com o ritual de comer e beber; acabava em goles de golos.
Para quem não levava metade da casa atrás, esta era uma visão que aproximava e apaixonava e servia de entrada ao que viria a ser a refeição, sentados que ficávamos em banquinhos corridos de madeira rodeando as casas de repasto, quase sempre entregues a famílias inteiras. O ritual era simples: fazia-se um rectângulo de balcões, em volta bancos para os benfiquistas não comerem de pé e lá dentro era uma festa de cerveja, vinho e cheiros de carnes com muita gordura. Para os meninos, trina de laranja, para os pais, vinho em barda, que a noite era uma criança. Nos entretantos, enquanto se trinchavam pedaços de entremeada, febras e as sopas iam ao lume, e regados, bem regados, a cerveja, a tinto, a branco e, para os mais friorentos, a abafadinho, discutiam-se onzes, dizia-se mal do treinador (sim, já na altura acontecia) e ansiava-se pela hora da visão gloriosa de um relvado iluminado por 4 focos de luz. Os pais faziam a sua pedagogia, perguntando aos filhos o nome dos 11 heróis que iriam entrar em campo, os filhos acertavam em 3 ou 4 jogadores mais conhecidos e de tempos a tempos até aparecia um que falava no nome de um jogador de um rival nacional. O pai não gostava, batia com o copo com força na madeira e gritava: "esse é lagarto, filho!" e o filho, que nunca se tinha apercebido de que os homens tinham a capacidade de se metamorfosear em répteis, bebia mais um gole de trina enquanto dizia para dentro que nunca mais abria a boca para dizer o nome daquele jogador.
E o mais bonito de tudo era quando, na mesma mesa, se juntavam avô, pai e filho. E todos eles, ali sentados em redor de um objectivo, apesar das idades, a sentirem o mesmo: a pulsação acelerada, a ansiedade, o nervosismo, a paixão. Todos eles com o coração da mesma idade.