Thursday, December 16, 2010

Não há velhos sem novos

Tenho 29 anos, a idade que os velhos têm para a minha condição mental. É feio, o número, irrita-me. Não pelo passar dos anos, que eles tendem a ter essa absurda forma de ser: passam. Mas pela estética: 29. Os números não se tocam. Fechados numa cama, o "2" e o "9" serão namorados com coisas por resolver. A perna do 2, imaginando uma mulher, está em sinal de recepção ao corpo do homem, a chamada, em linguagem romantico-patética, "cadeirinha". Mas repare-se no "9", tão independente da chamada feminina, mantém-se hirto na sua posição, quase indiferente, tocando-lhe apenas nos pezinhos. 29 são dois namorados com problemas por resolver. É possível que o "9" esteja neste momento, enquanto chove lá fora e a noite faz o seu papel de transição e dilema, reflectindo sobre a sua condição, os seus problemas mais latentes, como a conta do gás, o sem-abrigo que de manhã estivera na estação de comboios e que com um olhar mais triste deixou o "9" com sentimentos de culpa, o carro que faz um barulho estranho, aquela senhora que vende flores como se fossem beijos, as calças que queria comprar, a chegada do Natal e a necessidade de rir, dar prendas e fingir uma felicidade. É possível. Ainda assim, enquanto voam nesse quarto as questões do "9", doem os choros da "2" por estarem frios e distantes os pés do seu homem. O 29 é, de facto, uma belíssima e extraordinária merda.

Já do 30 tenho medo. Se é verdade que o "0" quase se funde com o "3", a ideia que o número tem é assustadora. Se eu chegar aos 30, façam-me um favor: comprem-me uma algália.

Thursday, November 11, 2010

O homem do Saldanha

Morreu o homem que me dizia olá, quando de noite passava por ele a caminho de algum sítio de que não me lembro. Vários sítios, vários olás. Nunca adeus, porque a surpresa do gesto era de assimilar, nunca de expelir. Vi-o em noites em que levava dentro de mim vários adeus e recebia aquele olá como uma esperança. Disse olá à esperança. Disse adeus à esperança. E ele ali, entre o adeus e o olá, sempre.


O olá morreu. Venha o adeus. Adeus. A deus.

Tuesday, September 07, 2010

O país das maravilhas

Dizem-me, desde que nasci, que sou a mulher mais feia do Mundo e, desde que nasci, eu aceito a frase como uma inevitabilidade que não posso contrariar. Não quero contrariar, não sei contrariar. Até hoje.

Desde pequena habituei-me a aceitar as frases alheias como minhas e, de tanto as absorver, muitas vezes perco-me em divagações sobre quais são, de facto, as da minha cabeça e quais as dos outros - elas misturam-se no rio de veias que sobe do coração ao cérebro, desce ao peito, vai aos olhos, morre na boca e seguem juntas numa barcaça feita de enganos e desvarios rumo a algum pensamento que nunca chega.

É por isso que aqui estou, hoje, dia de dizer ao Mundo que talvez discorde, mesmo que a medo, dessa concepção de mim como a maior de entre as mais feias - serei, sem pena de punição, uma mulher que por uma vez discorda do que o Mundo quer dizer e fazer de mim. Não tenho pretensões - pelo menos não mais do que qualquer outra mulher - à beleza como estado terminal e inequívoco, como prova de coisa alguma que justifique a mediania da existência; é só que hoje me sinto mais bela do que nos outros dias, me sinto mais verdadeira e mais mulher e mais criança do que nos dias que já passaram e dos que passarão, assim que o futuro se transmute em presente para acabar passado. Hoje acordei a sentir mais o cheiro das plantas e das flores que tenho na varanda, a amar mais a música que todos os dias me traz do sono e me transporta para este lado do espelho, a perceber melhor aquela mulher que do outro lado da rua rega religiosamente, com hábitos minuciosos e precisos, todas as milhares de florzinhas e pétalas que fazem daquele quintal a sua nova ideia de paraíso. Acordei mais apaixonada por este homem que dorme e acorda e se levanta e deita todos os dias nesta cama - um homem comum, não diferente de tantos outros que, noutras camas e noutras vidas, se levantam e deitam e acordam e dormem ao lado de mulheres iguais ou mais feias ou mais belas do que eu.

Olho-o pelo espelho e sinto o sangue açucarar-se-me quando o vejo dormir, quase criança, encostando o ouvido à almofada como se quisesse ouvir os sonhos que nela habitam. Amo este homem, hoje, a sua pele, a barba, os olhos fechados olhando para dentro, as mãos em repouso, os braços em repouso, a alma a dormir e eu a sentir-me a guardiã de todas as belezas do Mundo.

Olho-me no espelho e quase não me reconheço. Não fosse o sinal de nascença que trago como marca e prova de um dia ter vivido por entre a carne da minha mãe e talvez eu hoje dissesse directamente à minha imagem: "não, tu não és eu nem eu sou tu, somos ambas nós", talvez eu assumisse perante aquela que me olha de frente e não sou eu que quem acordou hoje foi a mulher mais bela que o Mundo já viu.

Wednesday, July 21, 2010

Respiro-me

A minha vida é o que fizeram dela: uma avenida de rios e mares entrecruzados, ilhas de abrigo e velas para quando o vento estiver desperto. Não é um cais nem uma duna ancorada no sol, não são árvores estendidas em altura sem movimento perpétuo que as faça voar e arrancar do solo os braços que as fazem dormentes de sonhos. É, antes, uma nota que ecoa, bem acima do plano das nuvens, entre o destino horizontal e o horizonte distante.
Não fui eu que a moldei, embora de mim exale, como nébula, a ideia de a esculpir consoante os meus desígnios e os meus quereres. Puro engano. Ela vive para além de mim e morre para lá de mim. Eu sou só o corpo que cumpre as direcções por ela escritas e escrevo-me porque é ela a mão que dirige. Sou nota, sou palavra, sou gesto de um cérebro que arquitecta, ao som e à escrita e ao movimento que me transcendem e me ultrapassam. 
A minha vida sou eu, sem mim: um barco vogando à mercê das marés e de um homem que grita do fundo do mar: uma voz embrulhada no borbulhar das águas sonhando um som no destino da visão de luz. Mas mesmo à superfície, se chega um pequeno nenúfar de voz humana, logo é abafada pelo deserto aquático, pelo azul das ondas. Talvez que então outro náufrago por ali dê à costa, vindo de lado e de maré nenhuns, perdido de sol e de rebentações, e, pelo fio molhado da voz submersa, me traga ao seu encontro. E talvez então morramos abraçados no espaço, voando de ondas em ilhas, nadando entre as estrelas, para a ilusão de sermos maiores que a vida.

Thursday, July 15, 2010

O nunca de amanhã

Corre-me um fio de fim por este corpo
que sobe
desce
consoante as ondas e as horas.
Nas marés,
ele avança com a potência das coisas impossíveis.
Na orla, morre de areia.
E, no fio, entre ondas e margem,
eu deito-me e recebo o tudo e o nada.

Monday, May 03, 2010

Nós

Isto que aqui vemos é de tal forma arrebatador e verdadeiro que nenhuma palavra humana, nenhum pensamento sequer, se pode comparar ao gesto, todo ele ternura, comoção, beleza.
O que não é normal é a indiferença.