Thursday, July 19, 2012

Dona Gracinda



Levanta-se ainda o céu tem um véu de luto. Desenjoa o sono e a fome dentro de um tacho e abre a porta para a horta. Deixa sair os cães para a rua, arruma os detritos da noite anterior e senta-se a bordar num banquinho de madeira do lado de fora da casa. 

O dia chega devagar, primeiro uma ilusão de luz, leves pontos fugazes por cima dos montes, depois um banho que desce as casas, galga as árvores, trepa as ruas. Chega-lhe luz à ponta dos pés e decide levantar-se. Abandona as rendas para dentro de um saco, as agulhas caem-lhe para o meio das couves tronchudas – só mais tarde, no final do dia, as procurará com medo de ter perdido a memória. 

Procura o fermento congelado, tira-lhe o saco que o envolve, dissolve-o em água e deixa-o em repouso. Depois traz vários sacos de farinha e deita-os em redondel por cima de uma arca antiga. Mistura-lhe o fermento e mexe. Primeiro, com cuidado, depois em gestos largos e fortes, como se deles dependesse a sobrevivência do mundo. O sal depende dos humores. Às vezes há quem diga que saiu demasiado salgado e ela enche-se de brios e defende que ao pão há que juntar a dose certa de sal, nem mais nem menos, a conta que alguém, há muitos milhares de dias atrás, lhe ensinou. Envolve a massa com uma toalha fina e deixa-a a descansar por 3 horas, como uma criança que pede sono. 

Põe uns botins, lava a cara e entrega-se aos desvarios da terra. Surpreende-se com a terra. Coisas que desmesuradamente florescem sem que ela o esperasse; outras, tratadas com afecto, teimosas no persistir de uma existência sem flor nem fruto, apenas um caule nervoso, sem substância. Diz-mo, quando me vê, entre a incredulidade e a admiração pelas coisas que não são matemáticas. 

“Estas aqui, dei-lhes água durante semanas, cuidei delas, cortei-as e não apareceu nada. Quem é que manda nisto?”

 Às vezes cala-se, muitas vezes cala-se, olhos nas mãos na terra, as mãos nas raízes, os olhos nas raízes, inspecciona as razões, põe a contra-luz, quer compreender. 

“Olha, esta nasceu por acaso, nunca plantei nada disto, quando dei por mim tinha a planta tão alta que se vê do monte” 

Quem, de entre nós, pode explicar os cios consecutivos da terra? Humores, desamores, químicas que só o sol, a água, o vento e a ternura das mãos ou o acaso poderão saber. E até esses, todos juntos ou individualmente, não explicam tudo.