Tuesday, August 14, 2012

O meu Bairro (1 e 2)

Desde 2002 que não vivia em Lisboa. Mesmo nesses anos vivi em Entrecampos, poiso simpático e muito arrumadinho, mas não era bem Lisboa, era um sítio que valia por estar ao lado da Feira Popular e do Jardim do Campo Grande. Quero dizer: era Lisboa mas com muitos prédios grandes a tapar o céu e pouca gente vinda das veias. 

Hoje acordo, abro o corpo para o mundo numa varanda cheia de livros e sol e o que vejo é o rio ao fundo empurrando barquinhos, barcos, grandes embarcações de entulho ou de coisas bonitas ou pessoas ou navegações, apanho o ângulo em que o Tejo se torna mar e finta uma fábrica e as areias do outro lado e talvez, talvez, tenha chegado o momento de estar em Lisboa. Gaivotas e andorinhas fodem neste final de tarde - promiscuidades biológicas incompreensíveis por cima de telhados. Há de tudo, aqui. 
Estou bem-vindo, Lisboa, estou sim senhor. Há 30 anos que queria voltar.

No meu bairro conheci uma goesa enquanto passeava metodicamente o cão. Era eu quem levava quadrúpede, a goesa, que não cheirava a caril mas tinha aquela voz de chamuça, ia com pressa, para um hospital onde trabalha há mais de 30 anos. Mas a pressa para os goeses é relativa: ficou na conversa comigo, com o cão, com todos os jovens e não-jovens de meia-idade. 
Muito afável, bonita à sua maneira cansada, elegante no trato, dedicada a alguma causa. Vive sozinha, desce a Boa-Hora todos os dias e depois, de pernas em semi-chamas, sobe-a já mais devagar e talvez com menos jeito para o diálogo assim tão espontâneo e cheio de esperança que só as 8: 23 da Ajuda podem dar. 
E depois da reforma? "Volto para Goa. Isto aqui é só filhos da puta". E seguiu Boa-Hora abaixo, com um beijo de palma de mão nos lábios porque já era hora de ir ver se retirava pelas veias alguma filhadaputice aos portugueses.