Friday, September 07, 2012

Ode à Margarida Prieto



Como eu não sou religioso, tenho tempo para pensar. Se eu andasse a planear roubar a caixa de esmolas da Igreja, a inventariar a vida dos outros, a estudar exaustivamente os livros que dizem que Deus existe porque o filho dele escreveu um livro, em rezas ou idas à missa, restar-me-ia pouquíssimo tempo para o resto. E o resto é absurdamente desgastante. Cansa muito pensar, consomem-se dias nisto e não se chega a conclusão nenhuma. Se ao menos Deus existisse para desinventar os que nele não crêem. Se ao menos.
 
Como tudo seria mais fácil se eu acreditasse que, morrendo, viveria e não esta estúpida ideia que não me sai da cabeça de que, morrendo, morro. Uma luz que me chegasse de fininho, me iluminasse e me criasse crente. Não precisava de ser cinematográfico; um toque no ombro, um pentear de cabelos, uma mão sobre a minha, dois cubos de gelo sobre a mesa, qualquer coisa que me ensinasse o dom da fé sem questões. Mas mantenho teimosamente esta luta comigo próprio, este absurdo necessitar de provas, de coisas tangíveis e claras. Se ao menos Deus existisse e me chamasse pelo nome. 

Às vezes estou na cozinha a olhar o horizonte nublado, requisitando absolvições divinas e oiço uma voz. "Ricardo, Ricardo" e não sei se é do gin se do adiantado do mundo mas entra-se-me uma esperança de eterno que logo é miseravelmente destruída pela realidade: afinal não é Deus nem Nosso Senhor nem sequer a Fátima que gostava de comer azeitonas em cima de uma árvore. É a vizinha que traz o quotidiano: "podes passar-me as cuecas do meu filho que caíram no teu estendal?". Se ao menos Deus fosse uma dona de casa. Se ao menos.

No outro dia, visitaram-me. Abri a porta e uma senhora muito bem composta com o seu deficiente mental de estimação atrás dela, de óculos muito grandes, vítreos e profundos, umas mãos pequenas e uns olhos que me perscrutavam as pontas dos pés. A senhora de cabelo apanhado, casaquinho de malha, ombros caídos sob a presença do etéreo e uns livrinhos de que, tem a certeza, eu vou gostar muito de ler. Não são bem livros, antes folhetos, páginas a azul e branco com propaganda jeová. "Já leu as crónicas do Dr. Abraham Milzenovky Tratcher Viktus?", "Com imensa pena minha, não li", "Pois é, as pessoas hoje em dia dedicam-se a outras coisas", "De facto", "O que tem a dizer sobre a religião?", "Talvez caia melhor com chourição", "É crente?", "Apenas no que vejo e no Benfica", "Vê este pobre coitado aqui perto de mim?", "Se os olhos não me enganam...", "Foi salvo por Deus", "Tem provas?", "Não são necessárias", "Nem para ele próprio?", "O rapazinho não tem capacidade para isso", "Porquê?", "Tem uma deficiência mental profunda", "Compreendo", "Já leu a Bíblia?", "Aos soluços", "E o que retirou dos ensinamentos?", "Pouca coisa, quase nada, um adultério aqui, uma traição acolá, uns crimes de fraco teor artístico, pão, vinho e pouco mais", "Não se brinca com coisas sérias.", "Precisamente o que sinto", "Então sabe que Deus existe e nos ama a todos?", "Não sei, nunca o conheci barba com barba", "Tem dúvidas sobre a existência de Deus?!?!?", "Todas e mais algumas", "Mas se está escrito no livro..."
 
De modo que penso, a espaços. Relaciono coisas. Por exemplo: no outro dia vi uma foto do M. tirada na Suíça que me mostrava um jogo de xadrez gigante, com pessoas em volta. Faz todo o sentido. O que peca no jogo é precisamente a diminuta visão que podemos ter dele, quando num tabuleiro ou, pior, na internet, com as pecinhas todas espalmadas e nós a vermos-lhes os cocurutos. Para o jogo de xadrez, é necessária visão e dimensão espacial. Para imaginarmos os ângulos, o jogo de vai e volta, o futuro das peças, a morte ou sobrevivência consoante as várias escolhas do agora. Fosse o xadrez um enorme campo de ténis e o desporto teria outra popularidade entre as gentes. E, no fundo, xadrez, ténis, bilhar, futebol, o jogo da parede ainda no velhinho ZXSpectrum são de um agnosticismo desarmante. Não chega crer, há que ir crendo, aos poucos, em ângulos, devagarinho, ganhando centímetros, teimando, desistindo, escolhendo vias, pondo em causa, acertando. 
 
A religião é um bocadinho como aquele ser, muito de Cascais, que um dia conheci em estágios futebolísticos e que tinha como conceito de vida o limpar o rabo um número, reduzido e sempre igual, de vezes: se a merda resistisse, tanto pior.