Sunday, April 05, 2015

O meu querido Chico Silveirinha

Poucos dias antes de morrer, o meu avô, já um esqueleto de pijama, pediu-me para ir à janela do corredor. Já não comia, pouco bebia, a vida já lhe era uma saudade qualquer que ainda lembrava porque é o coração o último soldado a morrer. Nas trincheiras do Hospital, seguimos, passo a passo, devagarinho, ele encostado a mim, eu encostado a ele, os ramos nus dos braços como árvores de Outono e a pele ou branca ou amarela, mas ainda capazes de fazer sentir o sangue, um último sangue que lá dentro pulsava. 

Eram talvez dez da noite e as horas não interessavam. Abri a janela, no nariz alentejano do meu avô passou uma brisa, um cheiro a luzes e a Lua. Cheirava a estrelas. Os olhos incendiados de despedida. O meu corpo a abraçá-lo como se eu é que fosse o avô do meu avô. Era noite, a vida estava quase a fechar, e os seus olhos abertos para a última imagem: um céu cheio de pirilampos. Apertou-me o braço, sorriu-me, olhou-me com olhos de criança e eu levei-o à cama para o aconchegar no sono dos sonhos dos sonhos do sono. 

Se a vida fosse perfeita como nos maus filmes, então eu teria posto o Carlos do Carmo, que era um amor do meu avô e que também é um amor meu por causa do meu avô. Na sala a respirar o odor da terra do caminho que vai da vida para a morte, em loop o final da «Madrugada»:

«Mas quase, ao romper da aurora, há uma guitarra que chora: saudades da minha vida.»