Levanta-se ainda o
céu tem um véu de luto. Desenjoa o sono e a fome dentro de um tacho e abre a
porta para a horta. Deixa sair os cães para a rua, arruma os detritos da noite
anterior e senta-se a bordar num banquinho de madeira do lado de fora da casa.
O dia chega devagar,
primeiro uma ilusão de luz, leves pontos fugazes por cima dos montes, depois um
banho que desce as casas, galga as árvores, trepa as ruas. Chega-lhe luz à
ponta dos pés e decide levantar-se. Abandona as rendas para dentro de um saco,
as agulhas caem-lhe para o meio das couves tronchudas – só mais tarde, no final
do dia, as procurará com medo de ter perdido a memória.
Procura o fermento
congelado, tira-lhe o saco que o envolve, dissolve-o em água e deixa-o em
repouso. Depois traz vários sacos de farinha e deita-os em redondel por cima de
uma arca antiga. Mistura-lhe o fermento e mexe. Primeiro, com cuidado, depois
em gestos largos e fortes, como se deles dependesse a sobrevivência do mundo. O
sal depende dos humores. Às vezes há quem diga que saiu demasiado salgado e ela
enche-se de brios e defende que ao pão há que juntar a dose certa de sal, nem
mais nem menos, a conta que alguém, há muitos milhares de dias atrás, lhe
ensinou. Envolve a massa com uma toalha fina e deixa-a a descansar por 3 horas,
como uma criança que pede sono.
Põe uns botins, lava
a cara e entrega-se aos desvarios da terra. Surpreende-se com a terra. Coisas
que desmesuradamente florescem sem que ela o esperasse; outras, tratadas com
afecto, teimosas no persistir de uma existência sem flor nem fruto, apenas um
caule nervoso, sem substância. Diz-mo, quando me vê, entre a incredulidade e a
admiração pelas coisas que não são matemáticas.
“Estas aqui, dei-lhes
água durante semanas, cuidei delas, cortei-as e não apareceu nada. Quem é que
manda nisto?”
Às vezes cala-se, muitas vezes cala-se, olhos
nas mãos na terra, as mãos nas raízes, os olhos nas raízes, inspecciona as
razões, põe a contra-luz, quer compreender.
“Olha, esta nasceu
por acaso, nunca plantei nada disto, quando dei por mim tinha a planta tão alta
que se vê do monte”
Quem, de entre nós,
pode explicar os cios consecutivos da terra? Humores, desamores, químicas que
só o sol, a água, o vento e a ternura das mãos ou o acaso poderão saber. E até
esses, todos juntos ou individualmente, não explicam tudo.