Desde 2002 que não vivia em Lisboa. Mesmo nesses anos vivi em
Entrecampos, poiso simpático e muito arrumadinho, mas não era bem
Lisboa, era um sítio que valia por estar ao lado da Feira Popular e do
Jardim do Campo Grande. Quero dizer: era Lisboa mas com muitos prédios
grandes a tapar o céu e pouca gente vinda das veias.
Hoje acordo, abro o
corpo para o mundo numa varanda cheia de livros e sol e o que vejo é o rio ao fundo empurrando barquinhos, barcos, grandes
embarcações de entulho ou de coisas bonitas ou pessoas ou navegações,
apanho o ângulo em que o Tejo se torna mar e finta uma fábrica e as
areias do outro lado e talvez, talvez, tenha chegado o momento de estar
em Lisboa. Gaivotas e andorinhas fodem neste final de tarde -
promiscuidades biológicas incompreensíveis por cima de telhados. Há de
tudo, aqui.
Estou bem-vindo, Lisboa, estou sim senhor. Há 30 anos que
queria voltar.
No meu bairro conheci uma goesa enquanto passeava metodicamente o cão.
Era eu quem levava quadrúpede, a goesa, que não cheirava a caril mas
tinha aquela voz de chamuça, ia com pressa, para um hospital onde
trabalha há mais de 30 anos. Mas a pressa para os goeses é relativa:
ficou na conversa comigo, com o cão, com todos os jovens e não-jovens de
meia-idade.
Muito afável, bonita à sua maneira cansada,
elegante no trato, dedicada a alguma causa. Vive sozinha, desce a
Boa-Hora todos os dias e depois, de pernas em semi-chamas, sobe-a já
mais devagar e talvez com menos jeito para o diálogo assim tão
espontâneo e cheio de esperança que só as 8: 23 da Ajuda podem dar.
E
depois da reforma? "Volto para Goa. Isto aqui é só filhos da puta". E
seguiu Boa-Hora abaixo, com um beijo de palma de mão nos lábios porque
já era hora de ir ver se retirava pelas veias alguma filhadaputice aos
portugueses.