Sunday, June 01, 2014

Sem condolências



Nos braços da noite, enquanto via desfilar pela pequena capela fria uma lenta procissão de pés e vestidos de luto, caras rudes de lamento e choro, rugas, desesperos, canções de pesar e sons de vozes em coscuvilhices, de mãos secas e largas sobre a cara Ernesto Tábuas sonhava às avessas: um sonho antigo que vinha do frio dos telhados, descia colado pelas paredes, galgava a mármore do chão, trepava pelas pernas, amansava-lhe a dor no peito e logo lhe cobria o pranto, envolvendo-o numa máscara ausente de dor, quase parecendo aliviado se olhos menos dados à cultura dos sentires o olhassem sem ternura. 

Era velho, aquele sonho. Tinha veios de árvore e braços de nuvens. Não sabia já se havia sonhado o sonho ou se era o sonho que o sonhava a ele, envolto numa espécie de capa etérea, sono acordado na luz da memória. Lembrava-se do sabor das laranjas, do cheiro a ramos e terra, de picar os dedos enquanto as abria e logo as sugava, sob um sol mais sol que os últimos sóis: era um sol completo de infância, riso e vento. 

Deitado com a cabeça encostada no tronco da árvore, Ernesto esperava. Ouvia o pequeno riacho ora lamber as pedras ora levantar sons de prata que o faziam erguer-se e espreitar o curso da água, esperando encontrar no seu seio algum peixe menos avisado que tivesse caído na armadilha que preparara: uma gaiola feita de galhos e folhas, um fio de cordame e a paciência dos sobreviventes. Porém, de repente, e porque os sonhos não têm geografia que os delimite, era Ernesto quem acabava armadilhado na corrente, puxado pela força das marés, náufrago de uma ribeira que se metamorfoseara em longo e vasto oceano. 

Dentro da gaiola, o seu pequeno corpo aumentava a cada espiral de onda que via formar-se por dentro de dentro do mar e eram as pernas e os braços e a cabeça e o peito que, crescendo à velocidade de uma respiração, chocavam contra as grades feitas de algas e troncos de árvores, ganhando os pulmões novas guelras, a pele escamas, os pés formatos estranhos de barbatanas. Queria sair dali, nadar até ao cimo, respirar humano o ar do vento, mas as águas enfurecidas

«Senhor Tábuas, as minhas sentidas condolências...»