Sunday, February 25, 2007

O Senhor Ventura, 1943, Miguel Torga




O alentejano rude, corajoso e sonhador que parte para Lisboa é um homem para o qual o espaço que o envolve é já demasiado pequeno para o mundo que possui no interior do seu sangue. Há um oceano de vontades no coração daquele homem. Não é – como alguém quis fazer entender – um Portugal desanimado nas suas entranhas e animado para uma diáspora. Este homem, se personifica alguma coisa, personifica, antes, a ideia de um país com uma alma demasiadamente grande para o território que ocupa. Transborda-se-lhe alma. Não é um ser frio, agarrado aos ideais e às loucuras; é um emotivo tolo, um louco em busca do que os seus sonhos imaginam. Há nele um canto mais alto, uma vontade suprema, a fisiologia de um guerrilheiro, enquanto vagueia por terras orientais, forjando, matando, consolando, amando. Este homem é como nós e não é como nós: o seu espírito envolve-se com a realidade num todo, paradoxo realista de que a nossa vida (a de todos) se distancia. O contacto feroz entre o real e o sangue, neste Senhor Ventura, ultrapassa-nos, comove-nos, humilha-nos. Nós não somos o Senhor Ventura. Para o bem e para o mal. E no entanto, que vontade de o sermos…
Ao longo do livro a ideia de que a personagem é linear adensa-se até meio; a partir daí notamos a sua total volatilidade, o seu humanismo desenfreado, mal construído, incongruente. Dilacerante, desconcertante. O Senhor Ventura desconchava toda a possibilidade de perfil exemplificativo: é um louco cirandando ao ritmo das suas loucuras, um anjo viril, um assomo de bestialidade e poesia.
Não há, no livro, outro trecho que de forma tão certeira nos apresente o Senhor Ventura do que aquele em que o autor nos revela a estupefacção de Tatiana – mulher inteligente, mas desprovida de emoção e generosidade – ao entender a substância de que é feito o alentejano da diáspora:
“A mulher olhou-o demoradamente. Não era fácil de compreender semelhante mistura de ferocidade e traficância, grandeza e lealdade. A sua inteligência fina, perspicaz, esbarrava diante de tamanho muro. Não quisera ou não pudera amá-lo. E sem amor não se podia entender nenhuma criatura.”

Repito: e sem amor não se podia entender nenhuma criatura.

Saturday, February 24, 2007

Eu ouvi aquele tipo falar, falar, falar. Durante duas horas ouvi o tipo falar. Dissertou sobre a política nacional, autarquias perdidas por clara ingenuidade diplomática, congressos, discussões, parvoíces, troca-tintas, insultos, depressões, conflitos e muito che guevara para sobremesa, que fica sempre bem.
Quando a conversa acabou, não acabou. Seguiu os seus meandros obscuros, incidiu-se sobre a política internacional, gente com tachos, pequenos latifúndios, grandes latifúndios, pobreza em massa, massa sem pobreza, quejandos que tais e muita, mas muita, eu disse muita, retórica verborreica, que é como quem diz diarreia pela boca. Aos rodos.
A minha barba fez questão de se mostrar desconfortável e eu fingi que compreendia tudo, aceitava tudo, concordava com tudo, e ia fumando cigarros agarrado ao volante, para que alguma coisa me lembrasse que o mundo não era aquilo.
Do outro lado do real, uma música insinuava-se. Começava com uma batida suave, samba em progressão, depois uma guitarra de acordes descoordenados, anjos lambendo as cordas, uma voz quente, feminina, um grito ancestral, e o mundo de repente tão perfeito outra vez, o mundo no seu início. A estrada é o melhor refúgio.

Sunday, February 18, 2007

A Rosa de Hiroxima





Pensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroxima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa sem nada.


Vinicius de Moraes
MEMORIA DE LA CARNE

Por la noche, con la luz apagada,
miraba a través de los cristales,
entre los conocidos huecos de la persiana.
Como un rito o una extraña costumbre,
la escena se repetía, día tras día,
igual siempre a sí misma.
Frente a frente, su ventana,
la veía aparecer y bajo la tenue claridad de la luz,
lentamente, irse haciendo desnuda.
Sus ropas caían sobre la silla,
primero grandes, luego más pequeñas,
hasta llegar al ocre color de su cuerpo.
Andando o sentada, sus movimientos tenían
la inútil inocencia del que no se cree observado
y la imprevista ternura del cansancio.
Cuando todo volvía a la oscuridad,
los apresurados golpes del corazón
se aquietaban, con una sosegada prontitud.
De quien así ocultamente deseé,
nunca supe su nombre
y el romper de su risa es aún el vacío.
Sin embargo, allí, en la perdida frontera de los catorce
[años,
por encima del Latín imposible
y de los misteriosos números de la Química,
el temblor detenido de mis manos,
la turbia fijeza de mis ojos sobre ella, permanecen,
dando fe de aquel tiempo, memoria de la carne.

De "A través del tiempo", Juan Luis Panero