As memórias escorrem, como sangue viscoso, por nós abaixo. Primeiro, quase sólidas, fogem-nos devagar, como se quisessem - e pudessem - aparecer-nos ao presente, por uma estranha e mágica e surreal realidade; depois, nas segundas instâncias do pensamento, descem-nos até aos pés como lava irequieta, embora lenta, que vai perdendo solidez montanha abaixo. As memórias, como lava ou como sangue ou como água, escorrem-nos e deixam pedaços de si nas zonas baixas das marés, nos fundos de poços, nas estranhas planícies das noites em branco. Acontece pararmos. Olharmos um resquício de memória junto a uma pedra, num dos vales por onde correu e desaguou uma delas. Ocorre pegarmos-lhe, como coisa inusitada, curiosa e fria. Um meteorito de rememorações passadas, um corpo em decomposição? uma única e possível sobrevivência. Pode ser até que, tal como uma ou mil crianças fazem neste momento, peguemos numa dessas pedras, numa dessas porções deixadas em nós pela correnteza rude do passar das horas e dos dias e dos séculos, e a atiremos à água, na vil esperança de a afundarmos no fundo do fundo do fundo de um oceano. Pode até ser que ela, esguia e persistente, antes de descer aos baixios do mar, saiba repetir-se, em saltos cada vez menos distantes, soltando círculos e círculos que ninguém sabe quando - se - têm um fim.
1 comment:
Lindíssimo... sem palavras.
Post a Comment