Thursday, April 16, 2009

Kentucky fried entremeada

Ali, onde agora vive um senhor mamarracho de nome Colombo, era um baldio de terras aos solavancos, couves, armaduras de príncipes antigos e casas da idade do Fernando Pessoa. Ali, onde a esta hora senhoras elegantes e meninas petulantes encontram mais uma fantástica bugiganga para encher a vaidade dos quartos e salas de estar, foi, um dia, um parque arcaico de estacionamento, um caminho tortuoso até à catedral e uma enorme sala de repasto benfiquista. Ao ar livre, como tinha de ser.
O carro estacionava-se a 2 quilómetros do Estádio e a partir daí punham-se galochas e enfrentava-se o lamaçal. Antes de chegarmos ao repasto, deliciava-nos todo aquele benfiquismo em forma de gente: grupos de 10, 15 pessoas faziam círculos imperfeitos em volta de uma fogueira, de um fogareiro e de uma panelona digna de reis que no seu interior aquecia e amparava um bruto cozido à portuguesa ou, para os mais sensíveis às vicissitudes das transformações gástricas, um belo de um caldo verde, recheadinho com chouriço do melhor que podia haver; para beber, tinto, que era a cor e bebida naturais de quem, por dentro, levava acesa a chama imensa.
Normalmente, eram homens, pais e filhos, poucas mulheres e ainda menos filhas. No entanto, a equipa feminina de cada família tinha também o seu ofício, visto que vinham das mãos delas os repastos que tanto aconchegavam o estômago e o coração dos seus mais-que-tudo. A fome e a sede, ali, naquele sítio onde hoje ardem galinhas de Kentucky e carnes do Sr. MacDonald, não eram mais do que a medida certa para o impulso de noites de glória. Começava com o ritual de comer e beber; acabava em goles de golos.
Para quem não levava metade da casa atrás, esta era uma visão que aproximava e apaixonava e servia de entrada ao que viria a ser a refeição, sentados que ficávamos em banquinhos corridos de madeira rodeando as casas de repasto, quase sempre entregues a famílias inteiras. O ritual era simples: fazia-se um rectângulo de balcões, em volta bancos para os benfiquistas não comerem de pé e lá dentro era uma festa de cerveja, vinho e cheiros de carnes com muita gordura. Para os meninos, trina de laranja, para os pais, vinho em barda, que a noite era uma criança. Nos entretantos, enquanto se trinchavam pedaços de entremeada, febras e as sopas iam ao lume, e regados, bem regados, a cerveja, a tinto, a branco e, para os mais friorentos, a abafadinho, discutiam-se onzes, dizia-se mal do treinador (sim, já na altura acontecia) e ansiava-se pela hora da visão gloriosa de um relvado iluminado por 4 focos de luz. Os pais faziam a sua pedagogia, perguntando aos filhos o nome dos 11 heróis que iriam entrar em campo, os filhos acertavam em 3 ou 4 jogadores mais conhecidos e de tempos a tempos até aparecia um que falava no nome de um jogador de um rival nacional. O pai não gostava, batia com o copo com força na madeira e gritava: "esse é lagarto, filho!" e o filho, que nunca se tinha apercebido de que os homens tinham a capacidade de se metamorfosear em répteis, bebia mais um gole de trina enquanto dizia para dentro que nunca mais abria a boca para dizer o nome daquele jogador.
E o mais bonito de tudo era quando, na mesma mesa, se juntavam avô, pai e filho. E todos eles, ali sentados em redor de um objectivo, apesar das idades, a sentirem o mesmo: a pulsação acelerada, a ansiedade, o nervosismo, a paixão. Todos eles com o coração da mesma idade.

6 comments:

Unknown said...

Já que sou um dos maiores fãs deste blog, tive que comentar este post aqui...

Fui uma única vez contigo ao Estádio da Luz, e sim era isso... Vivi isso contigo, já que nunca fui ao futebol com o meu pai por gosto dele... Foi sempre pelo meu amor ao futebol que ele foi comigo, daí faltar-me essa pontinha...
Mas vivi-o... Sempre que ia ao 27 cave direita e tinhas acabado de vir do jogo, ou ias no dia seguinte, ou etc. etc. etc., vivi-o...

E voltei a vivê-lo... Mas mais do que viver a ida ao Estádio, a ida a Lisboa (na altura um sítio tããããão longe), ao futebol, vivo a tua escrita e as tuas descrições tão eloquentes, quase a lembrar um Eça contemporâneo...

Bem regressado sejas... Volta ao mundo das letras, que ao do futebol pertencem muitos e ao das letras pertencem poucos!

Abraços

Unknown said...

Outra coisa:

se quiseres fotos tuas a beber cerveja, eu tenho... Não há necessidade de enganares os teus leitores com uma (singela) garrafita de água... :)

Ricardo said...

Boas memórias, companheiro.

Está para breve o regresso aos textos alérgicos a futebol.

Quanto à foto, tenho alguma vergonha dela. Mas quem sabe o que está dentro da garrafa?

Grande Abraço... paizão! :)

marta cs said...

Aléluia, Ricardo! Tu vê lá se escreves mais vezes. Jejuns de dois meses não valem. Tive de me pôr a ler Saramago, já viste?

Bom, aproveito para confessar que fui atleta do SLB. Aí dos seis aos 12 anos, para ser mais precisa. Os 100 metros de crol e costas eram todos meus. Gabarolices à parte, o que queria mesmo dizer é que me lembro bem de apanhar a camioneta da Amadora para o Colégio Militar e, de galochas, atravessar o lamaçal até ao estádio.

Era isto.

Ricardo said...

Saramago me gusta, Marta. Leste o último? Está engraçado.


Não te sabia antiga atleta do Glorioso! Portanto, deixa-me ver se percebi: ias de galochas até ao Estádio? Podias ir de barbatanas e aterravas directa na piscina! :)

marta cs said...

É mesmo o último que ando a ver se acabo. Eu também gosto do Saramago =)