A minha vida é o que fizeram dela: uma avenida de rios e mares entrecruzados, ilhas de abrigo e velas para quando o vento estiver desperto. Não é um cais nem uma duna ancorada no sol, não são árvores estendidas em altura sem movimento perpétuo que as faça voar e arrancar do solo os braços que as fazem dormentes de sonhos. É, antes, uma nota que ecoa, bem acima do plano das nuvens, entre o destino horizontal e o horizonte distante.
Não fui eu que a moldei, embora de mim exale, como nébula, a ideia de a esculpir consoante os meus desígnios e os meus quereres. Puro engano. Ela vive para além de mim e morre para lá de mim. Eu sou só o corpo que cumpre as direcções por ela escritas e escrevo-me porque é ela a mão que dirige. Sou nota, sou palavra, sou gesto de um cérebro que arquitecta, ao som e à escrita e ao movimento que me transcendem e me ultrapassam.
A minha vida sou eu, sem mim: um barco vogando à mercê das marés e de um homem que grita do fundo do mar: uma voz embrulhada no borbulhar das águas sonhando um som no destino da visão de luz. Mas mesmo à superfície, se chega um pequeno nenúfar de voz humana, logo é abafada pelo deserto aquático, pelo azul das ondas. Talvez que então outro náufrago por ali dê à costa, vindo de lado e de maré nenhuns, perdido de sol e de rebentações, e, pelo fio molhado da voz submersa, me traga ao seu encontro. E talvez então morramos abraçados no espaço, voando de ondas em ilhas, nadando entre as estrelas, para a ilusão de sermos maiores que a vida.