Thursday, March 29, 2007
























Há uma livraria que não é uma livraria (um bazar? um sítio perdido? Um alfarrabista?) que visito regularmente que me dá uma sensação de um mundo perdido, há muitos, muitos, muitos anos. Não tem os jornais e revistas arrumados de forma ordenada, não tem uma montra apelativa, nem tem sequer um cheiro dignificante – cheira a mofo e a mijo de gato. A característica olfactiva vem – acredito – de um acumular de anos de desordem total, em que as coisas parecem atiradas todas para um canto (até os jornais diários têm ar de estar ali há muitos anos!), em que o gato vagueia por cima de tudo, descarregando as suas necessidades ao acaso, em que a própria dona – mulher sentada lendo livros por detrás do caos – encaixa, naquele quadro abstracto de matizes mil e poeira infinita.
Eu frequento aquele sítio – dizia – em dias cinzentos, quando a ordem natural das coisas me cansa, e eu preciso do cheiro de mijo a gato e livros esquecidos para que a minha desordem natural consiga sobreviver. Há a questão de comprar livros do Émile Zola ou do Kerouac a um euro, livros fascinantes em que viajei ainda mais por partir para eles com a sensação boa de quase os ter achado (e achei!), mas é mais do que isso: quando ali entro o mundo deixa de existir como mundo, a mulher não é uma mulher (é um conceito), o gato não é um gato (é um elemento que vagueia) os livros não são livros (são viagens à espera) e eu não sou eu – sou uma personagem de um romance londrino, nebuloso e poético, atirado contra a força do tempo parado. Quando eu ali entro, o mundo faz o favor de esperar.

Monday, March 26, 2007

Os meus 10 GRANDES PORTUGUESES







































O GRANDE (CROMO) PORTUGUÊS

Num país a cair de podre em vários domínios governativos, não podia ser outro o vencedor: um ditadorzeco podre e com falta de equilíbrio na hora de sentar o rabinho na cadeira.
A insatisfação reinante em relação aos sucessivos governos desde 1974 e a total desconfiança nas capacidades sinceras dos políticos em fazer realmente deste país algo mais do que um macaco da república das bananas com a gravatinha da União Europeia, vieram provar-nos (como se não soubessemos já!) que até um medíocre ditador pode "ganhar" a Pessoa, Aristides de Sousa Mendes, D. João II, Camões, Infante D. Henrique, entre outros.
É lógico que nestas votações os mais votados costumam ser os mais recentes. Tem lógica que assim seja. E é por isso que nos três primeiros lugares ficaram três personalidades do século XX Português (excelente 3º lugar para Aristides: tinha ideia que pouca gente o conhecia em Portugal...pelos vistos, nem tanto assim).

A escolha do homem de Santa Comba Dão não demonstra grande inteligência ou cultura história por parte de muitos portugueses, mas vem revelar uma tendência: as pessoas preferem despotismo a insegurança; ordem a anarquia social. É preocupante a escolha, não o é a motivação.

Há ainda um factor que me preocupa nesta democracia, e vem do lado comunista: Odete Santos é um papagaio contínuo. É de uma "peixeirada", como diz o Rui, atroz. É ridícula. Mas nem é isso que me preocupa mais. Acho profundamente irritante e incongruente que uma mulher que supostamente apela aos instintos democráticos dos portugueses se levante - na hora do anúncio do primeiro classificado - e diga esta coisa aberrante: "É proibido o incentivo público ao fascismo!!!". Se Cunhal ganhasse... não seria proibido o incentivo público ao comunismo? É que ainda ninguém se esqueceu de Estaline. Gulag, Sibéria, 18 milhões de mortos... está recordada, Odete Otária?

O grande despautério da democracia é este mesmo: votar até num homem que não permitiria uma votação deste tipo. É assim o jogo. Se o quisermos jogar, jogamos; se não... volta-se ao Estado Novo e começa-se uma vez mais a lutar contra todo o tipo de atentado Às liberdades individuais. A História é cíclica e a estupidez eterna...

Thursday, March 22, 2007


Estilo






– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para um plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos , do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? (…)

Herberto Helder, in Os Passos em Volta, 1963