Thursday, March 22, 2007


Estilo






– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para um plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos , do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? (…)

Herberto Helder, in Os Passos em Volta, 1963

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