Saturday, February 09, 2008

Francisco do Carmo Silveirinha

Na sala, estão quatro homens. Deitados. Alguns ligados à vida por tubos que vêm de cima até às veias. Sempre o sangue. E a falta dele. Olho-os a medo, culpado de estar de pé, culpado de respirar aparentemente bem, aparentemente sem precisar de tubos ligados às veias ou máscaras a cobrir a cara. Ninguém parece importar-se, além de mim, com a minha condição de saúde, supostamente impecável. Além de mim. Culpo-me por estar de pé ou culpo o mundo por estarem os outros deitados? Não encontro resposta.
Ao canto, ao lado da janela que timidamente deixa entrar uma luz baça, encontro o homem que é meu. Mais do que os outros três, aquele é o meu homem. O meu lugar. Beijo o homem na testa, inundado de medo e de carinho. Nunca na vida tivera esta mistura explosiva dentro de mim: medo e carinho. A questão, nas próximas horas, será saber quem ganhará o duelo das emoções. Pretende-se que seja capaz de estancar as lágrimas, de esconder os mais secretos medos, para que o carinho de dentro de mim leve o homem a viajar, sem percalços ou hesitações. O homem olha-me, triste, quase indiferente. Sabe quem sou? Sabe que em manhãs e tardes e noites iguais às que agora vive, deitado numa cama, me teve nos braços, ancorando-me à vida, prendendo-me nos braços o meu coração pequeno? O tubo, gota a gota, respira, respiram os pulmões do homem, devagarinho, respira a luz, baça, para dentro do quarto, respiramos em uníssono, os quatro homens e eu, na certeza de uma luta pelo sangue. Pela vida. Num esboçar de dor, o homem vem pedir-me, olhando-me, que o levante. Levanto-o. O seu corpo que treme, magro, exige-lhe uma força que ele não tem; seguro-o por debaixo dos braços e iço-o como uma grua iça um telhado de uma casa. Ele abraça-me. Não por carinho, mas pela necessidade que o seu corpo tem de uma âncora. Sou eu agora o ancorador. O porto seguro daquele corpo, daquele homem, daquela vida, daquele sangue que luta, contra todas as previsões, por uma réstia de esperança. Por um resto de luz. Por mais um pequeno nada. Levo o homem devagar, apalpo-lhe o peito, as costelas, as ancas, osso e tecido e, talvez, uma gordura que eu já não sinto, mas que existe, e ainda o faz poder mover-se. Antes de sair do quarto, com o homem ancorado a mim, revejo o quarto e os três homens deitados: é isto a vida, penso. É isto a morte. No corredor, duas ou três enfermeiras, muito brancas, tratam o homem como uma criança. Brincam com ele, provocam-no, à espera de uma reacção. Não há, ou quase não há. Há um olhar que se perde, muito mas muito além dos limites daquele andar, daquelas paredes, do chão, das portas, das janelas, do mundo. É um olhar para dentro. Quando o homem olha as enfermeiras, quando o homem me olha, ele não nos olha, ele olha-se; olha a luz que parece esvair-se dentro dele, mas procura ainda no escuro, ou quase escuro, um último refúgio. Levo o homem pelo corredor, digo-lhe banalidades, mentiras, esperanças, digo-lhe e digo-me, digo-nos, pequenas verdades estilhaçadas que não chegam para que o homem me reconheça. Ele só reconhece o lugar onde está. O quarto escuro em que o seu sangue se move. Ancorado a mim vai, pé ante pé, levado pela inércia da sofreguidão humana, em direcção a uma janela. Dessa janela, só a noite entra. A noite e luzes. Umas mexendo-se, por caminhos e estradas, outras estanques, como se estivessem a velar a noite. Como se nos velassem naquela noite. Chegados à janela, abro-a para sentirmos o vento e uma chuva miudinha que vem molhar-nos as pontas dos narizes. Penteio o homem, passo-lhe gotas de chuvas pela cabeça e pelo cabelo ralo. Encosto o seu corpo fraco junto ao meu, para sobrevivermos. Sobreviveremos? Sem saber a resposta, é o corpo do homem que me responde: levantando os dois braços sobre os meus ombros, o homem abraça-me. E parece que aquele abraço é o fim e o princípio de tudo. Naquele abraço, estão dias, meses, anos abraçados. Anos abraçando meses. Meses abraçando dias. Dias abraçando horas. Horas abraçando uma luz. Choro. De medo, mas mais do que tudo, de carinho.

5 comments:

M. said...

:)

denise said...

Quando tiver algo para dizer acerca do texto,ié qdo tiver um comentário à altura do texto fá-lo-ei!passo apenas p aqui e deixo este parvo comentário somente para dizer que "o que dizer" n sei, apenas que gostei!!:) / :(

Rui said...

O que poderei dizer ? Nada do que diga por muito bem, ou mal, escrito que esteja terá algum impacto nesta altura da tua vida.

Infelizmente também já passei por algo semelhante ao que passas, e digo semelhante porque cada um vive as emoções, à sua maneira.

Parecia-me ignóbil e até estúpido estar a comentar a qualidade da tua escrita em mais este post, tratando-se do assunto que se trata, quem te conhece, quem viu esta relação de perto, reconhece em cada palavra um momento, uma altura que passou...

Grande amigo, sabes onde me encontrar, e sabes que toda a força que tenha para mim posso e quero neste momento transferi-la para ti. São muitos anos de amizade que nos unem, uns mais perto, outros mais longe, mas à distancia de um telefonema está um encontro, um abraço, um desabafo...

Força grande Ricardo !

Anonymous said...

This is great info to know.

Tudo de mim. Ou quase. said...

Ao ler-te, passaram uma série de imagens e pensamentos pela minha cabeça. Teria muito para escrever pensei. Mas agora todas as palavras me parecem ocas e vazias de sentido. Desvalorização de sentimentos. Não tas escrevo, mas penso-as.