Tuesday, September 07, 2010

O país das maravilhas

Dizem-me, desde que nasci, que sou a mulher mais feia do Mundo e, desde que nasci, eu aceito a frase como uma inevitabilidade que não posso contrariar. Não quero contrariar, não sei contrariar. Até hoje.

Desde pequena habituei-me a aceitar as frases alheias como minhas e, de tanto as absorver, muitas vezes perco-me em divagações sobre quais são, de facto, as da minha cabeça e quais as dos outros - elas misturam-se no rio de veias que sobe do coração ao cérebro, desce ao peito, vai aos olhos, morre na boca e seguem juntas numa barcaça feita de enganos e desvarios rumo a algum pensamento que nunca chega.

É por isso que aqui estou, hoje, dia de dizer ao Mundo que talvez discorde, mesmo que a medo, dessa concepção de mim como a maior de entre as mais feias - serei, sem pena de punição, uma mulher que por uma vez discorda do que o Mundo quer dizer e fazer de mim. Não tenho pretensões - pelo menos não mais do que qualquer outra mulher - à beleza como estado terminal e inequívoco, como prova de coisa alguma que justifique a mediania da existência; é só que hoje me sinto mais bela do que nos outros dias, me sinto mais verdadeira e mais mulher e mais criança do que nos dias que já passaram e dos que passarão, assim que o futuro se transmute em presente para acabar passado. Hoje acordei a sentir mais o cheiro das plantas e das flores que tenho na varanda, a amar mais a música que todos os dias me traz do sono e me transporta para este lado do espelho, a perceber melhor aquela mulher que do outro lado da rua rega religiosamente, com hábitos minuciosos e precisos, todas as milhares de florzinhas e pétalas que fazem daquele quintal a sua nova ideia de paraíso. Acordei mais apaixonada por este homem que dorme e acorda e se levanta e deita todos os dias nesta cama - um homem comum, não diferente de tantos outros que, noutras camas e noutras vidas, se levantam e deitam e acordam e dormem ao lado de mulheres iguais ou mais feias ou mais belas do que eu.

Olho-o pelo espelho e sinto o sangue açucarar-se-me quando o vejo dormir, quase criança, encostando o ouvido à almofada como se quisesse ouvir os sonhos que nela habitam. Amo este homem, hoje, a sua pele, a barba, os olhos fechados olhando para dentro, as mãos em repouso, os braços em repouso, a alma a dormir e eu a sentir-me a guardiã de todas as belezas do Mundo.

Olho-me no espelho e quase não me reconheço. Não fosse o sinal de nascença que trago como marca e prova de um dia ter vivido por entre a carne da minha mãe e talvez eu hoje dissesse directamente à minha imagem: "não, tu não és eu nem eu sou tu, somos ambas nós", talvez eu assumisse perante aquela que me olha de frente e não sou eu que quem acordou hoje foi a mulher mais bela que o Mundo já viu.

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