Monday, May 21, 2007
Era Dezembro e toda a gente falava numa «provável precisão de presentes». Eu não entendia a precisão provável, mas entendia a palavra «presentes». A árvore grande no canto parecia-me um monstro com mil bolas nas mil mãos e pernas finas, juntas, dentro de um vaso. Era provável que se precisasse de presentes, mas a comida ainda não estava na mesa. Eu olhava as bolas vermelhas nas mãos do monstro e toda a gente ria e falava em coisas que tinham santos, Jesus, e o menino sobre as palhas deitado. Era provável que precisasse de uma cama nova, mas o cabrito – ao que se sabe – estava de morrer. Depois dos corpos estarem bem nutridos com doces, deus e a provável azia dos enfeites vinícolas, eis que alguém relembrou a mesa que urgia a “provável precisão de presentes». Eu entendi a última palavra e fui-me sentar debaixo do monstro a comer alguns dos seus – seres de barrete vermelho que sabiam a chocolate. Quando os presentes jaziam em cima de cadeiras e um cemitério de papéis e laços inundava o chão, foram todos para a cama dormir mal e sonhar com os presentes que deviam ter recebido, reflectindo sobre o desconhecimento triste que todos os outros tinham de cada um. Era provável que a precisão fosse outra, pensei. Mas como eu não conhecia as palavras «provável» e «precisão», brinquei com o carrinho azul até de manhã.
Thursday, May 10, 2007
A liberdade é que é! A democracia é que é! O direito de voto é que é! A igualdade é que é! Perdemos? Abaixo a Democracia! Bora queimar carros!
Há coisas que eu não entendo: os meus olhos vêem, de facto, na televisão imagens de carros queimados nas ruas de Paris; os meus ouvidos ouvem, com toda a certeza, que os responsáveis por esses mesmos actos são os que não aceitam que Sarkozy tenha ganho as eleições; sinto que a notícia é invariavelmente dada como “apenas” mais uma confusão gerada por um núcleo “pequeno” de arruaceiros e dizem-me que, na sua maioria, o grupo é constituído por imigrantes em França que – ressalve-se o subtil pormenor – dias antes tiveram o direito de exercer a sua opinião, votando em quem bem quisessem e em quem achassem que defenderia da melhor forma os seus interesses.
A juntar a esta informação que me chega aos sentidos diariamente há também o passado político e ideológico de quem comete a façanha: gente que defende a igualdade entre os vários grupos culturais e étnicos da França de todas as liberdades; que defende, acima de tudo, o valor da democracia.
Penso. Juro que penso. Reflicto, mas há qualquer coisa que persiste em conflito. Será que queimar carros todos os dias é uma forma legal de afirmar convicções? – fico ruminando, ingenuamente, enquanto os órgãos de comunicação vão procurando atenuar a notícia.
A juntar a esta informação que me chega aos sentidos diariamente há também o passado político e ideológico de quem comete a façanha: gente que defende a igualdade entre os vários grupos culturais e étnicos da França de todas as liberdades; que defende, acima de tudo, o valor da democracia.
Penso. Juro que penso. Reflicto, mas há qualquer coisa que persiste em conflito. Será que queimar carros todos os dias é uma forma legal de afirmar convicções? – fico ruminando, ingenuamente, enquanto os órgãos de comunicação vão procurando atenuar a notícia.
Eu já disse várias vezes que não tenho escolha política. Não quero. Cheira mal. Sabe-me a azedo. Eu não hei-de chutar com o pé direito nem receber a bola de pé esquerdo, estou, aliás, bastante fatigado com esta questão de ter de ser de alguma coisa, de ter de escolher. Eu não escolho e não me importo nada com isso. Mas façam-me um favor: se é para reprimir idiotas, ao menos reprimam com método.
Wednesday, May 09, 2007
A nova era da democracia hipócrita
O atentado inqualificável por parte de uma nova elite moralista, que emerge por todos os lados do globo, chegou a Portugal. Afinal não estamos na cauda do mundo. E se fazemos leis contra os fumadores, que as façamos ainda mais rígidas, discriminatórias e hipócritas!
João Pereira Coutinho disse e bem:
«Em 1959, o filósofo Isaiah Berlin publicou um ensaio que se transformou em peça clássica do pensamento político. Intitula-se ‘Two Concepts of Liberty’ e, para resumir uma longa conversa, Berlin escrevia que, historicamente falando, é possível divisar dois conceitos de liberdade que, semelhantes na aparência, acabaram por evoluir em sentido contrário. De um lado, o conceito de liberdade ‘negativa’, caro aos liberais clássicos (como Stuart Mill), e que procura definir o espaço onde eu posso agir sem a coacção de terceiros.
Do outro, o conceito de liberdade ‘positiva’, onde a preocupação já não está no espaço do agente, mas na acção do agente: uma acção considerada livre se for racional. Berlin explica como o segundo conceito, estimável na teoria, acabou por ser usado e abusado por ditadores de toda a espécie, que em nome da liberdade ‘real’ se propuseram a ‘libertar’ os seres humanos rumo ao caminho da autonomia e do bem. Mas não é preciso citar casos extremos: as versões de paternalismo «soft», que a Europa importou com vigor, são o melhor exemplo deste vírus. A liberdade, na cabeça do nosso escol político, não significa agir sem coacção. Significa agir com a voz do dono.
Um dos exemplos mais explícitos do abuso está, naturalmente, no combate ao tabaco. Claro que o combate ao tabaco seria impensável sem o declínio das teologias tradicionais: se Deus não existe, o corpo é tudo o que nos resta. Não é por acaso que Lisboa se prepara para receber uma exposição macabra, feita com cadáveres chineses, onde é possível admirar (com nojo) os efeitos do fumo no organismo. E não é por acaso que a Alemanha nazi — um regime totalitário e ateu — se notabilizou nas campanhas antitabágicas, que sobreviveram ao Reich e são hoje repetidas por papagaios sem vergonha. Mas o combate aos fumadores, e as medidas iliberais que o Parlamento aprovou sem um espirro de hesitação, é também a forma mais velha de negar aos seres humanos o que é autenticamente deles: a possibilidade de viverem por sua conta e risco, assumindo as rédeas da sua própria mortalidade.»
João Pereira Coutinho disse e bem:
«Em 1959, o filósofo Isaiah Berlin publicou um ensaio que se transformou em peça clássica do pensamento político. Intitula-se ‘Two Concepts of Liberty’ e, para resumir uma longa conversa, Berlin escrevia que, historicamente falando, é possível divisar dois conceitos de liberdade que, semelhantes na aparência, acabaram por evoluir em sentido contrário. De um lado, o conceito de liberdade ‘negativa’, caro aos liberais clássicos (como Stuart Mill), e que procura definir o espaço onde eu posso agir sem a coacção de terceiros.
Do outro, o conceito de liberdade ‘positiva’, onde a preocupação já não está no espaço do agente, mas na acção do agente: uma acção considerada livre se for racional. Berlin explica como o segundo conceito, estimável na teoria, acabou por ser usado e abusado por ditadores de toda a espécie, que em nome da liberdade ‘real’ se propuseram a ‘libertar’ os seres humanos rumo ao caminho da autonomia e do bem. Mas não é preciso citar casos extremos: as versões de paternalismo «soft», que a Europa importou com vigor, são o melhor exemplo deste vírus. A liberdade, na cabeça do nosso escol político, não significa agir sem coacção. Significa agir com a voz do dono.
Um dos exemplos mais explícitos do abuso está, naturalmente, no combate ao tabaco. Claro que o combate ao tabaco seria impensável sem o declínio das teologias tradicionais: se Deus não existe, o corpo é tudo o que nos resta. Não é por acaso que Lisboa se prepara para receber uma exposição macabra, feita com cadáveres chineses, onde é possível admirar (com nojo) os efeitos do fumo no organismo. E não é por acaso que a Alemanha nazi — um regime totalitário e ateu — se notabilizou nas campanhas antitabágicas, que sobreviveram ao Reich e são hoje repetidas por papagaios sem vergonha. Mas o combate aos fumadores, e as medidas iliberais que o Parlamento aprovou sem um espirro de hesitação, é também a forma mais velha de negar aos seres humanos o que é autenticamente deles: a possibilidade de viverem por sua conta e risco, assumindo as rédeas da sua própria mortalidade.»
Monday, May 07, 2007
When A Blind Man Cries
If you're leaving close the door.
I'm not expecting people anymore.
Hear me grieving, I'm lying on the floor.
Whether I'm drunk or dead I really ain't too sure.
I'm a blind man, I'm a blind man and my world is pale.
When a blind man cries, Lord, you know there ain't no sadder tale.
Had a friend once in a room,
had a good time but it ended much too soon.
In a cold month in that room
we found a reason for the things we had to do.
I'm a blind man, I'm a blind man, now my room is cold.
When a blind man cries, Lord, you know he feels it from his soul.
Deep Purple
Friday, May 04, 2007
Os Sonhadores (Les Innocents), 2003, Bernardo Bertolucci
Nunca um filme me parecera mais certeiro e corrosivo, no que à discrepância entre ideologia e acção concerne. O mundo está cheio de falsos salvadores; gente muito inteligente, muito preocupada, com referências barbudas na parede do quarto, vermelhos insinuantes lembrando passados bélicos, enquanto espera o cheque do papá no final do mês.
Em “Sonhadores”, de Bertolucci, é isso que se vê, e se revê. E revemo-nos. Não há forma de assobiarmos para o lado. Aqueles somos nós; nascidos de uma voz interior que busca a verdade, influenciados por lutas da geração anterior, temo-nos como heróis dos nossos dias, fugindo ao sistema que já nos fugiu. E então fingimos. Sentados nas poltronas da classe burguesa em ruínas, fumamos muitos cigarros, e dizemos coisas inteligentes para disfarçar a nossa total vacuidade de objectivos. Conhecemos a fundo o Maio heróico, e o Abril de epopeia floral, mas nunca os vivemos; lemos muito sobre as lutas nas montanhas, e até fantasiamos sobre a possibilidade de humanidade, mas não sabemos o que isso quer dizer; Sim! Dylan, Doors, Joplin, Hendrix! No quarto, ouvimo-los embevecidos e achamos – com ternurenta ingenuidade! – que um dia. Achamos que um dia.
Bertolucci traz-nos o cenário perfeito: Paris, 68. O ícone da luta. Uma família de classe alta, em casarão burguês, vive os seus dias, alheada da realidade das ruas. Um pai, escritor, escreve para si e para a sua inteligência. A mãe não existe; é território do vácuo, entregue à lida da casa, ao amor (ou nem isso!) aos filhos, e fidelidade ao marido. Os filhos, irmãos siameses, dedicam os dias a um mundo de ilusão, entretidos em jogos de poder e sedução, muito em desacordo com o pai, embora feitos da mesma matéria, e copiando-o descaradamente, ainda que o não saibam. Até que um dia.
Vendo-se a sós – os pais desapareceram, a luta das ruas é coisa para operários! – os irmãos bebem vinhos caros da garrafeira do papá e gastam o dinheiro que este lhes deixou. Saem de casa para a Cinemateca, e desta para casa. O cinema permite-lhes a ilusão da memória. Conhecem um americano, e levam-no para casa. Sempre vem da terra de Hawks, e é perfeito para a consolidação da superioridade gaulesa sobre a estupidez do Tio Sam. Mas enganam-se. Às constantes referências cinematográficas, o americano (tranquilo) responde-lhes com outras (interessante a discussão à volta de Keaton e Chaplin).
Os dias não passam disto. Os nossos sonhadores envolvendo-se, física e mentalmente, em jogos. Jogos de ruínas, jogos de emoções em ruínas, de ideias em ruínas. Até que um dia.
O americano traz a luz à discussão. Pergunta ao francês o que fazem os posters de Mao e Che na parede, visto que a luta das ruas lhe é totalmente desinteressante. O francês não quer ouvir. Prefere ler muito, e beber os vinhos do pai. Até que um dia.
Quando a francesa, vendo o cheque que os pais lhes haviam deixado enquanto dormiam, decide uma morte em conjunto – sem que os outros saibam – o inevitável acontece: uma pedra parte as vidraças da casa senhorial, e eles acordam. Todos. Não havia volta a dar. Teriam, inevitavelmente, de tomar posição. Saem e uma manifestação na rua. Envolvem-se na multidão e, extasiados pela massa humana que os rodeia, fazem desaparecer o seu estatuto de classe burguesa e fundem-se na luta operária pela liberdade. O francês, toldado por anos de inactividade, o que quer é confrontação e violência. Agride os polícias, foge, e o filme acaba ao som de um herói musical americano, enquanto a polícia avança sobre os detractores.
No entanto, um pouco antes, o americano dissera ao francês: A violência não é solução. Não podemos usar as mesmas armas deles. As nossas armas são a inteligência e o coração.
Quem diria? Um americano a dar lições de moral a um francês. O mundo estava em ruínas.
O mundo está em ruínas. Passaram por nós 39 anos. Nós somos aqueles. Nós somos os sonhadores em sonho alheio. Perdidos por uma falta de sonho tangível gritante, repescamos os sonhos dos outros, e somos sonhadores em segunda mão. Os ideais dos nossos pais são os nossos e, tal como eles, perdemos a luta. Perdemos os sonhos.
Em “Sonhadores”, de Bertolucci, é isso que se vê, e se revê. E revemo-nos. Não há forma de assobiarmos para o lado. Aqueles somos nós; nascidos de uma voz interior que busca a verdade, influenciados por lutas da geração anterior, temo-nos como heróis dos nossos dias, fugindo ao sistema que já nos fugiu. E então fingimos. Sentados nas poltronas da classe burguesa em ruínas, fumamos muitos cigarros, e dizemos coisas inteligentes para disfarçar a nossa total vacuidade de objectivos. Conhecemos a fundo o Maio heróico, e o Abril de epopeia floral, mas nunca os vivemos; lemos muito sobre as lutas nas montanhas, e até fantasiamos sobre a possibilidade de humanidade, mas não sabemos o que isso quer dizer; Sim! Dylan, Doors, Joplin, Hendrix! No quarto, ouvimo-los embevecidos e achamos – com ternurenta ingenuidade! – que um dia. Achamos que um dia.
Bertolucci traz-nos o cenário perfeito: Paris, 68. O ícone da luta. Uma família de classe alta, em casarão burguês, vive os seus dias, alheada da realidade das ruas. Um pai, escritor, escreve para si e para a sua inteligência. A mãe não existe; é território do vácuo, entregue à lida da casa, ao amor (ou nem isso!) aos filhos, e fidelidade ao marido. Os filhos, irmãos siameses, dedicam os dias a um mundo de ilusão, entretidos em jogos de poder e sedução, muito em desacordo com o pai, embora feitos da mesma matéria, e copiando-o descaradamente, ainda que o não saibam. Até que um dia.
Vendo-se a sós – os pais desapareceram, a luta das ruas é coisa para operários! – os irmãos bebem vinhos caros da garrafeira do papá e gastam o dinheiro que este lhes deixou. Saem de casa para a Cinemateca, e desta para casa. O cinema permite-lhes a ilusão da memória. Conhecem um americano, e levam-no para casa. Sempre vem da terra de Hawks, e é perfeito para a consolidação da superioridade gaulesa sobre a estupidez do Tio Sam. Mas enganam-se. Às constantes referências cinematográficas, o americano (tranquilo) responde-lhes com outras (interessante a discussão à volta de Keaton e Chaplin).
Os dias não passam disto. Os nossos sonhadores envolvendo-se, física e mentalmente, em jogos. Jogos de ruínas, jogos de emoções em ruínas, de ideias em ruínas. Até que um dia.
O americano traz a luz à discussão. Pergunta ao francês o que fazem os posters de Mao e Che na parede, visto que a luta das ruas lhe é totalmente desinteressante. O francês não quer ouvir. Prefere ler muito, e beber os vinhos do pai. Até que um dia.
Quando a francesa, vendo o cheque que os pais lhes haviam deixado enquanto dormiam, decide uma morte em conjunto – sem que os outros saibam – o inevitável acontece: uma pedra parte as vidraças da casa senhorial, e eles acordam. Todos. Não havia volta a dar. Teriam, inevitavelmente, de tomar posição. Saem e uma manifestação na rua. Envolvem-se na multidão e, extasiados pela massa humana que os rodeia, fazem desaparecer o seu estatuto de classe burguesa e fundem-se na luta operária pela liberdade. O francês, toldado por anos de inactividade, o que quer é confrontação e violência. Agride os polícias, foge, e o filme acaba ao som de um herói musical americano, enquanto a polícia avança sobre os detractores.
No entanto, um pouco antes, o americano dissera ao francês: A violência não é solução. Não podemos usar as mesmas armas deles. As nossas armas são a inteligência e o coração.
Quem diria? Um americano a dar lições de moral a um francês. O mundo estava em ruínas.
O mundo está em ruínas. Passaram por nós 39 anos. Nós somos aqueles. Nós somos os sonhadores em sonho alheio. Perdidos por uma falta de sonho tangível gritante, repescamos os sonhos dos outros, e somos sonhadores em segunda mão. Os ideais dos nossos pais são os nossos e, tal como eles, perdemos a luta. Perdemos os sonhos.
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