Friday, May 04, 2007

Os Sonhadores (Les Innocents), 2003, Bernardo Bertolucci

Nunca um filme me parecera mais certeiro e corrosivo, no que à discrepância entre ideologia e acção concerne. O mundo está cheio de falsos salvadores; gente muito inteligente, muito preocupada, com referências barbudas na parede do quarto, vermelhos insinuantes lembrando passados bélicos, enquanto espera o cheque do papá no final do mês.
Em “Sonhadores”, de Bertolucci, é isso que se vê, e se revê. E revemo-nos. Não há forma de assobiarmos para o lado. Aqueles somos nós; nascidos de uma voz interior que busca a verdade, influenciados por lutas da geração anterior, temo-nos como heróis dos nossos dias, fugindo ao sistema que já nos fugiu. E então fingimos. Sentados nas poltronas da classe burguesa em ruínas, fumamos muitos cigarros, e dizemos coisas inteligentes para disfarçar a nossa total vacuidade de objectivos. Conhecemos a fundo o Maio heróico, e o Abril de epopeia floral, mas nunca os vivemos; lemos muito sobre as lutas nas montanhas, e até fantasiamos sobre a possibilidade de humanidade, mas não sabemos o que isso quer dizer; Sim! Dylan, Doors, Joplin, Hendrix! No quarto, ouvimo-los embevecidos e achamos – com ternurenta ingenuidade! – que um dia. Achamos que um dia.
Bertolucci traz-nos o cenário perfeito: Paris, 68. O ícone da luta. Uma família de classe alta, em casarão burguês, vive os seus dias, alheada da realidade das ruas. Um pai, escritor, escreve para si e para a sua inteligência. A mãe não existe; é território do vácuo, entregue à lida da casa, ao amor (ou nem isso!) aos filhos, e fidelidade ao marido. Os filhos, irmãos siameses, dedicam os dias a um mundo de ilusão, entretidos em jogos de poder e sedução, muito em desacordo com o pai, embora feitos da mesma matéria, e copiando-o descaradamente, ainda que o não saibam. Até que um dia.
Vendo-se a sós – os pais desapareceram, a luta das ruas é coisa para operários! – os irmãos bebem vinhos caros da garrafeira do papá e gastam o dinheiro que este lhes deixou. Saem de casa para a Cinemateca, e desta para casa. O cinema permite-lhes a ilusão da memória. Conhecem um americano, e levam-no para casa. Sempre vem da terra de Hawks, e é perfeito para a consolidação da superioridade gaulesa sobre a estupidez do Tio Sam. Mas enganam-se. Às constantes referências cinematográficas, o americano (tranquilo) responde-lhes com outras (interessante a discussão à volta de Keaton e Chaplin).
Os dias não passam disto. Os nossos sonhadores envolvendo-se, física e mentalmente, em jogos. Jogos de ruínas, jogos de emoções em ruínas, de ideias em ruínas. Até que um dia.
O americano traz a luz à discussão. Pergunta ao francês o que fazem os posters de Mao e Che na parede, visto que a luta das ruas lhe é totalmente desinteressante. O francês não quer ouvir. Prefere ler muito, e beber os vinhos do pai. Até que um dia.
Quando a francesa, vendo o cheque que os pais lhes haviam deixado enquanto dormiam, decide uma morte em conjunto – sem que os outros saibam – o inevitável acontece: uma pedra parte as vidraças da casa senhorial, e eles acordam. Todos. Não havia volta a dar. Teriam, inevitavelmente, de tomar posição. Saem e uma manifestação na rua. Envolvem-se na multidão e, extasiados pela massa humana que os rodeia, fazem desaparecer o seu estatuto de classe burguesa e fundem-se na luta operária pela liberdade. O francês, toldado por anos de inactividade, o que quer é confrontação e violência. Agride os polícias, foge, e o filme acaba ao som de um herói musical americano, enquanto a polícia avança sobre os detractores.
No entanto, um pouco antes, o americano dissera ao francês: A violência não é solução. Não podemos usar as mesmas armas deles. As nossas armas são a inteligência e o coração.
Quem diria? Um americano a dar lições de moral a um francês. O mundo estava em ruínas.
O mundo está em ruínas. Passaram por nós 39 anos. Nós somos aqueles. Nós somos os sonhadores em sonho alheio. Perdidos por uma falta de sonho tangível gritante, repescamos os sonhos dos outros, e somos sonhadores em segunda mão. Os ideais dos nossos pais são os nossos e, tal como eles, perdemos a luta. Perdemos os sonhos.

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