Sunday, May 08, 2011

Um poema horrível

Sou feito de divergências comigo próprio
Paradoxos entre a infância e o estado adulto
entre mim e mim
sem que uma voz sobressaia e ganhe a noite.

Por exemplo: nasci em Lisboa mas fui às duas semanas viver em Abrantes
Por exemplo: vivi e cresci em Abrantes mas fui aos 17 para Guimarães, aos 18 para Lisboa (berço, berço) e aos 21 para Amadora. Aos 29, estou em Queluz e só Alguém sabe onde irei acabar.

Por exemplo: vivo num dos lugares mais populados do país e no entanto acordo sempre com o som dos pássaros e o cheiro de eucaliptos
Levanto-me, venho à janela e vejo coelhos e gatos, vejo flores, céu aberto e um sol que quer perdão
Pássaros passam em voo rasante aos olhos e há quem jure que vê a erva crescer
Eu detenho-me nos vários tons de verde que existem e não sei.
 
Tenho dias em que acredito que posso mergulhar da minha janela para uma piscina de verde e sair do outro lado, no centro da terra, onde vivem, angustiados, todos os que sofrem sem saber porquê
Há nisto a doce ternura de uma geografia dos sentidos mas há também a enorme imponderabilidade das coisas que desconhecemos.
 
Sou isto ou aquilo? Temática já por tantos adulterada e corrompida e no entanto tão pura, tão humana, tão só.
 
Havia momentos em que os cheiros, os sons e as imagens pareciam mais nítidas, talvez por saber menos coisas - o mundo era mundo e chegava. Hoje, fechado entre as quatro paredes do mundo burocrático, tenho ainda assim os esgares em que levanto as pedras milenares e surjo limpo de impurezas. Como se lavasse a alma. Como se, de repente, o mundo voltasse ao ponto em que um cordão umbilical me lembrasse de onde venho. Como um choro por dentro. E perco a bússola das palavras.

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