Monday, December 19, 2011

Amo o que está invisível aos olhos do mundo: o vento que deixa as folhas da árvore em madrugadas sem fim, o gesto de quem vive dentro de uma mulher, a pequena dor das coisas que não se perdoam. Amo o fogo posto no coração, de quem alimentou uma tristeza dentro da sua demência. Amo a frase perdida, que podia mudar o instante. Amo sem amar, numa desilusão cheia de dias e meses. Amo sem fronteiras em países que metem nas montanhas uma subida ao lugar dos condimentos. E é, entre fugas ao abismo e alegrias sem fim, que te vou amando. Sem razão nem palavras. Um dia que esquece que vai ser noite.

Tuesday, November 08, 2011

Morte


“Isto vai ter de acabar”, disse de si para si. “Já não somos os mesmos, a alegria não é a mesma, até a tristeza parece mais triste”. Respondeu: “Eu sei, eu compreendo…”. “Mas não és tu, sou eu…”. “Não, sou eu, tu ainda…”. “Eu já nada, nem um mililitro de lágrimas…”. “Nem um peidinho ao entardecer, nada…”. “Pois é, nem um peidinho ao entardecer…”.

Agarrou na pistola, fê-la subir à altura dos ombros e disparou. Caíram em estilhaços os vidros do espelho sobre as pantufas em cima do bidé. E nunca mais leu poesia.

Tuesday, September 06, 2011

O estranho mundo da realidade

Houve um homem que, cansado de olhar para o número de amigos que tinha no facebook, decidiu sair de casa. À saída do prédio, uma luz estranhíssima intrigou-o. Pôs os óculos 3D que guardava da última sessão de Harry Potter que tinha visto, tirou do bolso o iphone 4 e foi ao google perceber que estranha luz era aquela. A internet explicou-lhe: havia uma estrela chamada Sol que, diziam as últimas modas da ciência, iluminava a parte do mundo onde o homem vivia. Achou graça à descoberta e quis voltar para casa, tal era a experiência inovadora que vivera. Mas depois lembrou-se que tinha uma utilidade chamada "foursquare" que queria utilizar. Andou 10 metros cheio de medo do que as ruas podiam fazer-lhe, sacou do telemóvel e enviou para os amigos do twitter a informação: estava, de facto, na rua, e avisava o mundo do momento inacreditável: "I´m at pedragulho mijado ao pé do caixote do lixo". Os amigos virtuais responderam-lhe logo: "tu és o maior, não há quem te segure". E ele, com muito cuidado, voltou ao prédio e entrou em casa. Pena ter-se cruzado com um vizinho que o chamou para ir ver a bola ao café, acontecimento social de tal forma perigoso que se apressou a inventar trabalhos urgentes, o mau tempo que as negras nuvens adivinhavam e aquela dor nas costas que o impossibilitavam de outras aventuras. Chegado a casa, abriu o computador e contou tudo no blogue. Um dia desgastante.

Saturday, August 06, 2011

Poema

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.

E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.

Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?

O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.


Mayakovsky, 1927

Friday, July 29, 2011

Uma receita para os não-sóbrios

Sempre tive a tendência para saltar passos na aprendizagem - desse facto, surgiu este cérebro meio macerado. Na arte da culinária não fui diferente: passei directamente do esparguete com atum para a criação de pratos nunca antes imaginados (provavelmente por não fazerem sentido nenhum).
Tenho até já alguns "signature dish", que, por motivos óbvios, não revelarei. O último, no entanto, poderá ser partilhado, porque não tenho a certeza de que possua capacidade bastante para a imortalidade: puré de farinheira com legumes em molho reduzido de vinho encorpado com resquícios de rolha do Baixo Alentejo e terra de legumes mal lavados.
E reza assim: cozem-se duas cenouras pequenas, meia courgette, um pimento laranja e um pimento amarelo uns bons 15 minutos, para que os bastardos fiquem entre o duro e o amolecido. Retiram-se. Aventam-se para um wok (que está muito na moda) cheio de margarina capaz de originar dois ataques cardíacos consecutivos e espera-se que, na orgia dos enroscanços, eles amoleçam e façam molho. Aí uns 10 minutos, misturando lume brando com lume forte só para o efeito-surpresa. No meio do namoro, corta-se uma farinheira alentejana aos pedaços e atira-se para o colchão de vegetais numa espécie de pornografia alimentar para maiores de 25. Baixa-se o lume para que o sexo não gere queimaduras e deixa-se em namoro uns bons 10 minutos. Quando a loucura já ganha laivos de promiscuidade inaceitável, verte-se um copo (generoso) de vinho branco e acalmam-se as hormonas dos meninos. Depois fica ali tudo a embebedar-se (eles e nós). Retira-se, faz-se uma decoração muito paneleira (mas sem a paneleirice da salsa) e serve-se.

O agrado do comensal será inversamente proporcional ao nível de sobriedade.

Bom apetite.

Thursday, May 26, 2011

Olhó tuga nas Américas!

"Portuguese Day" em Wall Street. Parece que estou a ver o Teixeira dos Santos com umas chouriças ao pescoço a atirar sandes de torresmos aos engravatados lá em baixo, enquanto canta o Fado da Mariquinhas com um lenço do Minho na cabeça. As pingas do chouriço a cair nas cabeças dos americanos e um cheiro a queijo de Castelo Branco por todo o anfiteatro. "Disgusting!", diz um americano menos sensível às peculiaridades dos convidados. "Tá calado, filho da puta, antes que te enfie um pau de marmeleiro pelo wall street acima!", reage Teixeira dos Santos, visivelmente alterado por aquela falta de respeito e hospitalidade duvidosa. Nisto, parte tudo para a violência! Saltam alheiras de Mirandela, leitões aos guinchos, gente a fugir de um javali em fúria, o Nasdaq em perigo, os computadores pelo chão, dois beirões em cima dos plasmas a cortar nacos de presunto, um cheiro pestilento fruto de um alívio anal de um minhoto mais dado aos desvarios das couves tronchudas. "We have to get out of here fast! Follow me!", aponta o Rei de Wall Street, enquanto se desvia de um Galo de Barcelos em fúria. "Falas de mim? Tu falas é da puta da tua mãe, americano do caralho!", grita um boi barrosão que tranquilamente comia as impressoras, os faxes e os iphones. Broas de milho, pães de Mafra, bolas, paposecos, carcaças, uns atrás dos outros lançados pela facção dos alentejanos que por esta altura tinham aberto o garrafão de tintol no meio da arena e aprestavam-se para abrir o cestinho de verga com o farnel completo. "Do you have any kind of cheese, portuguese little guy?", questiona um engravatado já com o cabelo coberto de queijo da serra e a gravata encharcada pela gordura do presunto de Lamego. "Vai comer para o caralho, pá, isto é só para a gente" e atira o americano borda fora para a rua, onde foi atrolepado por um táxi que o deixou feito linguiça. Quando chegaram as televisões, Teixeira dos Santos, ainda desgrenhado, sujo dos pés à cabeça, com um bacalhau na mão e pedaços de feijoada a escorrerem-lhe pelo cabelo, muito calmamente afirmou: "acho que está na altura de irmos todos para casa".

As silly seasons

Sou aquele tipo de energúmeno que chegou tarde ao fenómeno das séries. Sempre fui um vagabundo em frente à televisão: pouco fiel, pouco fiável; bastava um qualquer rabo de saia (que é como quem diz: um qualquer anúncio extraordinário) para que desistisse do programa aclamado pela maioria.
Nunca segui as séries anos a fio, esperando religiosamente todas as semanas um novo episódio - nem percebo quem consegue tal feito. Dava em doido se o fizesse. Para mim, agora que cheguei definitivamente ao mundo do seriado (gosto tanto deste lado rede record em mim), não há nada como sacar uma série no isohunt e vê-la de enchofrada (inventei agora mas parece-me ter futuro) pela madrugada adentro.
Foi assim que, nos últimos 5 meses, arrasei com o Weeds, House, Curb your enthusiasm, Sopranos e agora estou a dois do fim do Lost. Deixem-me falar-vos do Lost: uma grande ideia de gente sem unhas para manter os pratos todos no ar. Ainda não vi o final, estou a adiar para ter mais gostinho, mas esta última temporada é daquelas coisas que não deixam dúvidas a ninguém: os homens já não sabem o que fazer com aquilo, então inventam, metem coisas novas, coisas estúpidas, coisas impensáveis, coisas anormais, coisas. Para que no fim uns idiotas achem que aquilo é genial e misterioso. Chegou a ser, sim. Nas primeiras temporadas. Ah as primeiras temporadas do Lost (vêem como entrei nisto de forma apaixonada?).
A minha mulher diz-me que eu vivo as séries como uma paixão assolapada, nunca como um amor que dura no tempo. Diz que vivo em obsessão. Concordo. Mas eu também tenho mais que fazer do que andar a amar um gordo careca mafioso, uma gaja boa que vende droga, um careca judeu, um médico drogado ou um conjunto de paspalhos que vêem um fumo negro e descobrem o segredo miraculoso da existência.
E agora vou ali acabar de ver aquilo que é para, como um bom romance de férias, me esquecer logo a seguir.

Sunday, May 08, 2011

Um poema horrível

Sou feito de divergências comigo próprio
Paradoxos entre a infância e o estado adulto
entre mim e mim
sem que uma voz sobressaia e ganhe a noite.

Por exemplo: nasci em Lisboa mas fui às duas semanas viver em Abrantes
Por exemplo: vivi e cresci em Abrantes mas fui aos 17 para Guimarães, aos 18 para Lisboa (berço, berço) e aos 21 para Amadora. Aos 29, estou em Queluz e só Alguém sabe onde irei acabar.

Por exemplo: vivo num dos lugares mais populados do país e no entanto acordo sempre com o som dos pássaros e o cheiro de eucaliptos
Levanto-me, venho à janela e vejo coelhos e gatos, vejo flores, céu aberto e um sol que quer perdão
Pássaros passam em voo rasante aos olhos e há quem jure que vê a erva crescer
Eu detenho-me nos vários tons de verde que existem e não sei.
 
Tenho dias em que acredito que posso mergulhar da minha janela para uma piscina de verde e sair do outro lado, no centro da terra, onde vivem, angustiados, todos os que sofrem sem saber porquê
Há nisto a doce ternura de uma geografia dos sentidos mas há também a enorme imponderabilidade das coisas que desconhecemos.
 
Sou isto ou aquilo? Temática já por tantos adulterada e corrompida e no entanto tão pura, tão humana, tão só.
 
Havia momentos em que os cheiros, os sons e as imagens pareciam mais nítidas, talvez por saber menos coisas - o mundo era mundo e chegava. Hoje, fechado entre as quatro paredes do mundo burocrático, tenho ainda assim os esgares em que levanto as pedras milenares e surjo limpo de impurezas. Como se lavasse a alma. Como se, de repente, o mundo voltasse ao ponto em que um cordão umbilical me lembrasse de onde venho. Como um choro por dentro. E perco a bússola das palavras.

Monday, March 14, 2011

Para comer como se comem as coisas boas, com as mãos

Já alguém se deu ao gozo supremo de fazer uma viagem no tempo e consumir de forma selvática o álbum dos Low, "I could live in hope" (1994)? Não? É muito provável que o meu caro esteja errado mas não quero ferir susceptibilidades, até porque eu faço esta viagem temporal de uma forma anacrónica: viajo no tempo para descobrir lá o que lá nunca ouvi. Ou seja, vou de viagem a um lugar antigo para conhecer o que não conheci quando lá vivia. O que torna tudo ainda mais apetecido, embora, de certo modo, frustrante, porque a ideia de ter passado 17 anos sem este assombro luminoso é qualquer coisa que magoa lá não sei bem onde, no lugar dos prazeres.

O álbum vai por ali fora, sem dar satisfações a ninguém, meio desinteressado até, pulsando, pulsando, subindo na onda, deitando no chão, levantando no ar, puxando para perto, abraçando, comendo, largando no espaço, deixando voar, gritando no alto, caindo em mergulho, mergulhando em voo. Quando se dá por ela, está-se com o corpo todo marcado a sal e sol, cheio de asas nas costas e pombas nos pés. Não, isto está bonzinho. Vão lá ouvir que vos faz bem. Eu começo a cantar, o resto fazem vocês:




They tell you come tomorrow

Nothing for you now
You listen so intently
And slide


Hearing only yourself
You wait for the truth
How can you get it
When all you do
Is slide?